sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Um Outro Mundo, Capítulos 13, 14 e 15

13.


Poderiam ter passado minutos ou horas. Ele não tinha como saber.
Joshua acordou abruptamente. Com os olhos arregalados e respiração pesada, ele parecia ter acabado de se salvar de um afogamento.
Lentamente, o rapaz se levantou e, inevitavelmente, olhou para sua frente.
A imponente montanha de escombros estava a sua frente. Além dela, estava a única saída conhecida do lugar, agora, inacessível. Sob ela, estavam três corpos.
Desculpem-me... Joshua disse baixo pensando em Richard e Cristina, quase como se orasse pelos dois. E... Principalmente... Obrigado...
De repente, o rosto de Behemoth veio em sua mente. Joshua trincou os dentes. Porém, logo se acalmou. A risada do maníaco não mais veio o perturbar.
Adeus. Joshua disse secamente para Behemoth.
Então, o rapaz se voltou para trás. Agora, a passagem estava livre. Se não houvessem mais surpresas, ele logo estaria junto de Adriana.
Com passos rápidos, Joshua subiu as escadas, degrau seguido de degrau, até chegar a uma porta de madeira. A aparência velha e quebradiça dela era um bom sinal. Afinal, se ela estivesse trancada, não deveria ser difícil derrubá-la.
Entretanto, não foi preciso. Joshua girou a maçaneta redonda lentamente e, emitindo um rangido agudo, a porta se abriu.
Cautelosamente, o rapaz entrou na nova sala.
Joshua foi então surpreendido pelo cenário.
A sala, apesar de não ser muito grande, era digna de fazer parte da mansão. O papel de parede vermelho, o chão de madeira tão limpo que parecia brilhar, os candelabros dourados acesos nas paredes, o grande lustre no teto, a luz do luar que entrava gentilmente pela janela, junto às cortinas de seda. Tudo parecia perfeito demais.
Lindo, não? Disse uma voz familiar.
Joshua se voltou para trás, já esperando por Margareth. Entretanto, a visão o deixou atordoado.
Uma mulher que mais parecia ser uma princesa saída de um conto de fadas sorria para o rapaz. Ela usada um longo vestido de cetim azul como o céu da manhã. Sobre seus cabelos castanhos avermelhados, uma tiara prateada reluzia. O colar de pérolas em seu pescoço era tão belo quanto seu sorriso. Sua pele era tão branca e suave quanto algodão. Seus olhos verdes pareciam esmeraldas.
Lindo... A mulher repetiu. Mas não passa de uma ilusão...
Quando ela terminou de dizer aquelas palavras, a sala se transformou completamente.
Tudo escureceu. A luz dos candelabros se tornou fraca, quase morta. A luz da lua parecia ter sido coberta por nuvens negras. Agora, Joshua mal conseguia ver a mulher a sua frente.
Mas gostamos de nos enganar, não? Ela continuou a dizer. Gostamos do belo, seja real ou idealizado, não é mesmo?
Joshua sentiu seu corpo tremendo. Da janela, apenas rajadas de ventos frios e impiedosos vinham. O rapaz sentia o seu corpo mais frio a cada instante que se passava.
Você saindo daqui com ela nos braços... A mulher riu. Quão romântico... E improvável. Mas... Acreditar nisso é o que te faz seguir em frente... Nesse instante, o rosto de Margareth surgiu dentre as sombras, pálido, como se emitisse uma luz alva e fantasmagórica. Não é mesmo!?
Joshua caiu para trás, sentado, com o coração disparado dentro do peito.
Margareth gargalhou enquanto o resto da sala se iluminava lentamente. Todo o belo cenário estava definhado, tão decrépito quanto a própria assombração que ria.
Você pode ter sobrevivido até agora, caro Joshua... Disse Margareth. Mas eu o asseguro que, entre você e sua amada, apenas um sairá daqui vivo.
Se esse for o caso... O rapaz disse enquanto se levantava, recuperando-se do susto e encarando o monstro sem medo. Eu morrerei para salvá-la.
Ah... O rosto dela se contorceu com desgosto. Claro que vai... Ela zombou. Como se você fosse capaz de fazer isso...
Você verá.
Não. O que eu verei é você sofrendo... O que eu verei é você fracassando... O que eu verei é você em agonia nos seus últimos instantes de vida... Margareth exibiu um largo sorriso. Você verá...
Lentamente, ela desapareceu diante dos olhos de Joshua, como se desfizesse e se misturasse com o ar.
Antes que o rapaz pudesse pensar em qualquer coisa, o grito de Adriana soou.
Alarmado, Joshua correu em direção a única nova porta do lugar. Aquela tinha que ser a passagem que o levaria até sua amada.
Com a porta aberta, o rapaz viu a sala sombria a sua frente e, no centro dela, uma escada em caracol. O único caminho era descer os velhos degraus de madeira.
Como som de mais um grito de desespero de Adriana, Joshua esvaziou sua mente de todos os pensamentos.
Desesperado, ele correu escadas abaixo, pisoteando em cada degrau e os ouvindo ranger como o crepitar de uma fogueira.
Após o que pareceu ser uma eternidade, Joshua chegou a um pequeno corredor de pedra que mais parecia ser parte de um antigo castelo. O lugar, fracamente iluminado, apresentava dois caminhos possíveis para o rapaz. À esquerda havia uma porta de madeira fechada. Á direita havia uma porta que havia sido derrubada. Talvez aquilo fosse obra de Behemoth.
Entretanto, Joshua não olhou para a esquerda uma segunda vez. Afinal, na pequena sala revelada pela porta à direita estava uma mulher de longos cabelos castanhos trajando uma camiseta preta, calças jeans e botas beges.
Ele parecia não acreditar. Joshua estava, agora, a apenas alguns metros de distância de sua amada.
A mulher, entretanto, não parecia bem. Presa por correntes de aço nos pulsos e tornozelos, Adriana não conseguia nem mesmo olhar para frente. Com as roupas em frangalhos, pele extremamente pálida e a cabeça baixa, era difícil dizer se ela ainda vivia.
Adriana... Ele murmurou. Adriana...
Lentamente, Joshua andou até a sua amada. Com a voz sumindo, ele chamou por Adriana, esperando uma resposta, tentando manter as esperanças.
Em pouco tempo ele estava lá, em frente à mulher que amava.
Sem receber uma resposta, o rapaz caiu de joelhos.
Adriana... Joshua conseguiu dizer. Meu amor... Não...
Ela ainda está viva. Disse Margareth.
Joshua se voltou para trás, ainda de joelhos.
Ela só está fraca. A assombração continuou. Sabe... Behemoth não é muito bom em cuidar de seus bichinhos...
Joshua voltou o seu olhar para Adriana. Podia ter sido apenas impressão dele, mas ele jurou ver sua amada respirar, mesmo que muito fraca, inflando e desinflando o peito lentamente.
Adriana... O rapaz tocou gentilmente nos cabelos castanhos dela. Vou te tirar daqui... Nós voltaremos para o nosso mundo juntos...
Eu adoraria te ver tentar fazer isso... Margareth zombou.
Enfurecido, Joshua se levantou e encarou o monstro sem olhos na saída da sala.
E você? O rapaz indagou. Não vai fazer nada? Vai apenas ficar me perturbando como uma mosca?
Insolente... Margareth trincou os dentes. Caso você não tenha percebido, eu não mato com as minhas próprias mãos. Não, não... Meu trabalho é trazer monstros até vocês, humanos. Aí sim vocês são mortos. Ela abriu um largo sorriso. Como você acha que Behemoth te achou? Posso lhe garantir que não foi por acaso...
Hm... Joshua pareceu chocado. Entretanto, aquilo foi por apenas um segundo. E então? Quem você vai chamar? Behemoth não virá dessa vez.
Morto ele não está. Retrucou Margareth. Eu ainda posso sentir sua presença. Afinal, ele está tão perto... E tão ferido. Vai demorar um pouco pro grandalhão voltar à ativa. Entretanto, tenho outros amigos que podem cuidar de você. Apenas espere. Espere e...
Ela não conseguiu terminar de falar. Uma lâmina em formato de lua crescente atravessou seu peito.
Margareth olhou para baixo sem poder acreditar. Lentamente, ela levou as mãos à fria lâmina da foice.
Ninguém virá por você. Disse Estmund. Eu mesmo me certifiquei disso.
Bruscamente, o ceifador retirou a lâmina de sua arma do corpo de Margareth.
Com um último grito de pavor, ela se desfez em um punhado de pó.
Em questão de segundos, não havia mais resquícios de Margareth.
Joshua caiu de joelhos e, então, olhou maravilhado para Estmund que, lentamente, se aproximava do jovem.
É... É você mesmo? O rapaz indagou.
Ora... O ceifador sorriu. Mas é claro que sou.
Ah... Obrigado.
Não precisa agradecer.
Você... Você acabou de me salvar. Ele riu. A Morte acabou de salvar a minha vida.
Joshua riu novamente, alegre como nunca.
Entretanto, toda a felicidade abandonou sua face quando ele sentiu a ponta da Lamina gelada da foice de Estmund contra a sua pele.
Veja bem... A feição do ceifador se tornou séria. Minha intenção não é salvar a sua vida. Apenas quis salvar a sua alma, entende? Salvá-la para que, no fim, ela seja minha. E, esteja certo de que este é o fim... Para você e sua amada, pelo menos.


14.


Ah... Joshua olhou boquiaberto para o ceifador. Como assim...?
Consumir almas torna a nós, ceifadores, mais poderosos. Estmund respondeu. Entretanto... É contra as regras, sabe? Afinal, nosso trabalho é garantir que as almas cheguem ao Plano Espiritual. Não cabe a nós decidir o destino de vocês. E, é claro, a proibição do consumo de almas faz com que os ceifadores menos experientes, como eu, sejam mantidos sob o controle dos mais experientes... Como é o caso daquela megera da Morgana. Ele pareceu irritado, trincando os dentes, apenas em pensar na ceifadora. Após um instante, ele parecia mais calmo. Enfim... Estamos em um lugar sem regras, abandonado por anjos, demônios, Djinns e ceifadores... Bem... Ele riu. Abandonado pela maioria dos ceifadores, pelo menos...
Joshua estava incrédulo. Ele não podia acreditar na traição daquele que estava sorrindo em sua frente.
Mas... Por quê? O rapaz indagou com dificuldade. Por que fazer tudo isso? Me arrastar pra cá... Arrastar Adriana pra cá... Ter mentido para mim... Ele parecia tentar encontrar as palavras certas. Por que tanto trabalho, tanto esforço?
Porque é o único jeito. O único jeito que eu posso fugir das regras e dessa monotonia que é a eternidade. O tempo passa e eu não mudo. Não fico mais forte nem mais fraco. Não estou nem mais próximo nem mais distante do meu fim. Eu sou um escrevo que nunca será liberto... Ele riu sinistramente. Eu tinha que mudar isso se eu não quisesse enlouquecer. Uma vida sem prazeres não vale a pena ser vivida. Vocês, humanos, sabem disso muito bem. Vocês sempre acabam quebrando alguma regra, vocês sempre correm riscos para que, no final, vocês se beneficiem, para que vocês se sintam bem... Para que vocês se sintam vivos.
E isso justifica os assassinatos!?
Ah... Estmund abriu um largo e aterrorizante sorriso. Mas é claro que sim. Consumir as almas é muito prazeroso, sabe? Porém, eu já esperava por isso. Agora... Ceifar a vida de alguém praticamente petrificado pelo pavor, alguém que implorou por misericórdia até o último segundo... Ele gargalhou. Isso foi um deleite inesperado, tão prazeroso quanto consumir uma alma... Talvez até mais prazeroso!
Você é louco...
Louco!? Por quê!? Por uma vez na vida em fazer o que eu quero!? Por que colocar finalmente em primeiro lugar!? Por tentar ser feliz!? Hein!?
Joshua queria ter uma resposta decente, mas nada vinha a mente. Sua mão direita alcançou o revólver prateado em seu bolso. Ele queria terminar aquela discussão o mais rapidamente possível. Entretanto, ele se lembrou que não tinha mais balas na arma. Tudo o que ele poderia fazer com ela era atacar com uma coronhada. Aquilo não seria uma boa ideia contra alguém que manejava uma foice.
Enfim... Estmund continuou, parecendo mais calmo. O que você diz não mais importa. Em breve você estará morto. E nem tente fugir dessa vez. Isso é... Ele apontou para trás do rapaz, na direção da ainda inconsciente e acorrentada Adriana. A não ser que você pretenda abandoná-la... Porque, nesse caso, eu te permito que você tente correr um pouco enquanto eu me divirto com ela.
Joshua abaixou a cabeça e cerrou os punhos.
Vá... O rapaz disse após hesitar um pouco. Eu já não me importo mais...
Ora... Estmund sorriu. Toda a sua jornada foi em vão... Mas não me ouça. Salve a sua pele. Seja humano. Sobreviva.
O ceifador virou as costas para Joshua. Calmamente, Estmund andou na direção de Adriana.
Entretanto, ele veio abaixo rapidamente.
O mais rápido que pôde, Joshua sacou o revólver e o bateu contra as costas do ceifador. Instantaneamente, Estmund caiu como se não tivesse mais vida. Sua foice caiu para o lado. O rapaz exibiu um sorriso triunfante no rosto.
Maldito! O ceifador esbravejou enquanto tirava o rosto do rosto do chão. Lentamente, ele se levantou e encarou a arma nas mãos de Joshua. Um brinquedinho dos seus falecidos amigos paranormais, não? Droga... Ele é efetivo mesmo sem balas... Porém... Você vai precisar das balas se quiser ter alguma chance...
Estmund não terminou de falar. Joshua atacou mais uma vez com uma coronhada. Dessa vez, porém, o golpe acertou o rosto do ceifador.
Com um grito de dor, Estmund cambaleou para trás. Ele levou a mão ao rosto tentando cobrir a ferida. Entretanto, já era tarde. Joshua havia visto a marca que mais parecia uma queimadura no rosto do ceifador.
Estmund olhou para a sua foice no chão. Rapidamente, ele se atirou até ela. Porém, antes que ele a alcançasse, Joshua conseguiu aparecer na frente do ceifador. Dessa vez, entretanto, o golpe não foi uma simples coronhada. Friamente, ele segurou a arma contra a face do inimigo que gritava incontrolavelmente.
Após um instante, porém, Joshua soltou o ceifador. O rapaz estava sentindo náuseas, com o rosto claramente perturbado. Os gritos de Estmund não o afetaram. Entretanto, a sua pele, que derretia e se soltava da face, liberando um odor pútrido, deixou o rapaz horrorizado.
Joshua respirou fundo, tentando se recuperar da visão aterrorizante do rosto do velho Estmund se desfazendo.
De repente, o rapaz percebeu que os gritos de dor do ceifador se transformaram em risos estridentes.
Joshua olhou na direção de Estmund. Seu terno cinzento estava escurecendo, tornando-se negro e, estranhamente, deixando de ser sólido. O tecido negro parecia inconstante, tremeluzindo como chamas enquanto a carne podre de seu corpo caia aos poucos.
Sabe... A voz do ceifador estava distorcida. Entretanto, ele não parecia sofrer com o que acontecia consigo. Esse lugar, Gehenna como alguns chamam, é um labirinto até mesmo para mim. Se você tivesse escolhido fugir, você poderia ter se salvo, voltado ao seu mundo, como já fez antes, e tentado o seu melhor para nunca mais cair aqui. Eu nunca mais poderia encostar um dedo em você, ainda mais porque estariam de olho em mim. Enquanto o cabelo e os pelos da barba iam caindo, chifres de touro iam surgindo do topo de sua cabeça. Mas por causa de uma humana qualquer... Você decidiu morrer. Seus ossos começaram a se tornar mais largos e grossos conforme mais pedaços de carne podre se soltavam por entre suas roupas que, agora, pareciam mais chamas negras que bruxuleavam rapidamente. Mas não posso reclamar, sabe? Com você aqui, tenho mais uma presa para eu poder me divertir, mais uma deliciosa alma para comer e, também, não levanto tanta suspeita já que eu não vou deixar nenhum sobrevivente, não é mesmo?
Nesse momento, Estmund parou de falar. Ele levou as mãos ao rosto e, sem hesitar, começou a puxá-lo para frente. Seu crânio foi se alongando enquanto seus olhos derretiam e escorriam junto com a carne fumegante. Seus dentes foram se alongando até se transformarem em presas.
Joshua agora olhava sem reação para a criatura em sua frente. O esqueleto tinha longos e grossos ossos que mais pareciam uma armadura coberta de sangue. Seu crânio mais parecia com o de um crocodilo agora, com a diferença dos chifres pontiagudos. Seus olhos eram buracos ocos e negros como os dos monstros de Gehenna. As chamas negras que envolviam seu corpo se organizaram na forma de uma longa capa esfarrapada. Sua foice havia voltado para suas mãos, agora, porém, ela estava diferente: mais longa, com o cabo irregular e com a lâmina ainda maior e mais afiada.
Então, garoto... Estmund disse com a voz ainda mais profunda e distorcida. Está pronto? Pronto para temer a morte? Pronto para agonizar durante os seus últimos momentos de vida!?
Não vou mais fugir. Joshua disse secamente.
Ha! Ele exclamou. Queria que sua amada estivesse consciente pra ouvir você sendo tão heróico...
Estmund se voltou para trás, na direção de Adriana. Sua face não tinha como demonstrar a surpresa por ver que a mulher não mais estava lá.
Como...? O monstruoso ceifador tentava entender aquilo.
Joshua, agora, também olhava para onde sua amada estava. As correntes estavam intactas no lugar. Ela havia simplesmente desaparecido de lá, sem explicação aparente. Entretanto, aquilo fez com que o rapaz pudesse respirar aliviado. Mesmo sem saber o que havia acontecido, nada poderia ser pior para Adriana do que permanecer.
Mais algum amiguinho paranormal te ajudando!? Estmund indagou. Hein!?
Não até onde eu saiba. Joshua respondeu calmamente.
Droga...! Tenho que achá-la antes que ela escape...
Se é que ela já não escapou...
Estmund olhou o rapaz nos olhos. Sua calma naquele momento era inexplicável para o ceifador.
Com um golpe violento e um urro, Estmund atacou rapidamente. Sua foice se cravou no peito de Joshua. Pela primeira vez, o ceifador não via uma de suas vítimas se contorcer de dor ou medo. O rapaz havia aceitado calmamente a sua morte.
Bruscamente, Estmund puxou sua foice de volta, deixando o corpo de Joshua cair no chão, sem vida, sem alma.


15.


Joshua acordou com um sobressalto.
Sua respiração estava rápida e pesada, quase como se tivesse sido salvo de se afogar por pouco.
Com o coração batendo freneticamente dentro do peito o rapaz olhou em volta. Ele se encontrava em uma plataforma circular que parecia ser feita de mármore. Ao seu redor, um céu escuro e estrelado adornado com mais plataformas brancas e escadarias.
Joshua, aturdido, levou uma mão a cabeça. Uma enxaqueca o atingia sempre que ele tentava se lembrar do que havia acontecido.
Tente não se mexer. Disse uma voz profunda atrás do rapaz.
Ele nem conseguiu reagir. Rapidamente, uma dor aguda o atingiu na nuca, paralisando o seu corpo. De repente, um turbilhão de pensamentos o atingiu.
Milhões de cenas passaram rapidamente diante de seus olhos. Em questão de segundos, porém, tudo estava claro. O rosto de Adriana veio em sua mente, bem como as ruas de Gehenna, o velho vizinho que revelou ser um ceifador, Morgana o guiando até Cristina e
Richard, o casal sendo morto um de cada vez, o teto desabando sobre Behemoth, Margareth sendo morta por Estmund e, por fim, a dor que ele sentiu quando a foice dele atravessou seu peito.
Ora... Creio que funcionou... A voz disse novamente.
Ofegante, Joshua se voltou para trás, encarando seu interlocutor. Entretanto, uma expressão de estranhamento surgiu no rosto do jovem.
A criatura a frente dele era no mínimo curiosa. Parecia uma pessoa, com o corpo humanóide, sentada de pernas cruzadas. Sua altura passava dos três metros. Entretanto, não era possível distinguir seu gênero. Seu corpo parecia ser transparente ou, pelo menos, se mesclava com a cor do céu escuro e estrelado. Toda a superfície de sua face era lisa: sem olhos, orelhas, nariz, boca ou cabelo.
Ah... A criatura inclinou a cabeça para a esquerda. Sua voz parecia vir de algum lugar de sua cabeça, ecoando gravemente, apesar de não ser visível. Você parece estar bem ciente do que está acontecendo a sua volta agora... Creio que é uma boa hora para que as explicações comecem, não acha?
Hm... Claro... Joshua murmurou ainda um pouco confuso. Então, me responda... Quem é você? Ou melhor... O que é você?
Um Djinn. Respondeu uma voz familiar.
Joshua olhou para a esquerda, por cima de seu ombro, e viu Morgana se aproximando, caminhando exuberante com seu vestido negro e foice em mãos.
Ceifadora... O Djinn parecia contente. Creio que aquele assunto está terminado.
Sim, está. Ela afirmou.
Que assunto? Joshua indagou.
Fui dar um fim ao Estmund. Morgana olhou para a própria foice um pouco melancólica. Ele não poderia sair impune depois de tudo o que fez. Ela olhou para o Djinn. E eu tenho você a agradecer.
Apenas fiz o que eu julguei ser certo. A criatura respondeu. E, sinceramente, eu nunca gostei muito dele.
Entendo... Morgana olhou para Joshua e, então, voltou-se novamente para o Djinn. Enfim, prossiga com as explicações. Gostaria de ver a reação do humano, porém, o trabalho me chama.
Claro, claro... O Djinn murmurou.
Rapidamente, um portal se abriu e Morgana deixou o local. Entretanto, antes disso, por apenas uma fração de segundos, ela olhou para Joshua. A ceifadora parecia temer o pior.
Então... A criatura continuou. Sim, eu sou um Djinn. Mais especificamente, aquele que ficou com a sua alma.
Com a minha alma...? O rapaz parecia confuso. Você quer dizer... Você ficou com a minha alma depois que Estmund a tirou de mim?
Não. Eu fiquei com a sua alma após fazermos o nosso trato.
Trato...? Mas... Que trato?
Ora, creio que já te falaram sobre isso. Morgana ou Estmund. Um dos dois deve ter mencionado o trato que os humanos fazem com um Djinn, certo?
Sim... Mas, então... Joshua parecia não acreditar. Você quer dizer que... Eu já havia morrido antes?
Mas é claro. E aí está você agora. Em sua forma espiritual.
Você quer dizer que eu estava vivo apenas com o meu corpo físico...? Todo esse tempo...?
Sim. Desde antes de você conhecer sua amada Adriana.
Hm... Joshua levou as mãos à cabeça. Ela doía acreditar naquilo. Não... Não faz sentido... Eu... Eu deveria me lembrar, certo? Eu deveria me lembrar do nosso trato, não é!?
Normalmente, sim. Mas você foi um caso especial.
Por quê...?
Por que você pediu para não se lembrar.
Hã...? Por que isso?
Você queria provar que você poderia se sacrificar para salvar alguém que você amasse. E, para isso, você não queria nenhum tipo de assistência, ninguém te lembrando do que fazer. Afinal, você tirou a própria vida da primeira vez por não conseguir viver com a culpa, por não conseguir viver sabendo o quão fraco e covarde você foi...
Joshua caiu de joelhos. A cada palavra proferida pelo Djinn, mais imagens e sons voltavam para a sua mente. Em questão de segundos, um curto filme estava passando diante de seus olhos.
Abigail era o nome dela. Ela era tão linda quanto Adriana, pelo menos, aos olhos de Joshua. Tudo parecia ser um conto de fadas entre os dois. Entretanto, tudo mudou no dia do acidente.
Um incêndio tomou conta do prédio onde o casal morava. Tudo parecia ter vindo abaixo rapidamente. Vendo Abigail presa debaixo dos escombros, Joshua ficou paralisado. Entre as chamas e o calor sufocante, ele temeu pela própria vida. Impotente, ele acabou abandonando sua amada.
Os olhos tristes e assustados de Abigail eram a última lembrança deixada por ela, algo que torturaria Joshua pelo resto de sua primeira vida. Entretanto ninguém podia realmente culpá-lo. Seus amigos, família e até os familiares de sua amada. Ninguém poderia exigir que ele tivesse se arriscado tanto, afinal, ele poderia não ter sobrevivido. Porém, não ter sobrevivido era exatamente o que ele queria.
Imerso em uma depressão sem fim, caçado por pesadelos agonizantes e torturado pelos lembretes de sua fraqueza e covardia, Joshua resolveu tirar a própria vida.
Mas não há motivo para se sentir mal. Disse o Djinn calmamente após alguns instantes. Afinal, você conseguiu fazer o que você não pôde antes.
Joshua levantou a cabeça lentamente na direção do Djinn.
Você foi até Gehenna, humano. Ele continuou. Um lugar considerado pior que o inferno. E você voltou lá por vontade própria. Isso apenas para salvar sua amada. O Djinn pareceu rir contente. Você enfrentou um monstro sedento de sangue, praticamente indestrutível, e seguiu em frente mesmo sozinho. Você até bateu de frente contra Estmund! Você é uma lenda entre os humanos, rapaz. Pelo menos, aqui no Plano Espiritual.
Joshua não pôde conter um sorriso. Tantos elogios depois de tudo o que ele passou eram, claramente, bem vindos. Entretanto, haviam ainda perguntas a serem respondidas.
Os olhos do rapaz se arregalaram quando ele se lembrou dos eventos que ocorreram instantes antes de sua segunda morte.
Adriana...! Ele exclamou. O que aconteceu com ela!? Ela não estava mais lá quando eu estava prestes a morrer...!
Eu a tirei de lá. O Djinn respondeu como se não fosse nada. Aproveitei o momento em que você estava enfrentando Estmund e a trouxe de volta ao seu mundo.
Ah... Joshua sentiu um peso enorme saindo de cima de seus ombros. Ele respirou aliviado e sorriu. Obrigado... Ele conseguiu dizer. Muito obrigado.
Não precisa agradecer. Apenas fiz o que me pareceu ser o certo. E com isso eu quero dizer que fiz o que eu gostaria de ter feito. Simples assim. Aliás, foi por isso que eu o mantive vivo.
Hã...? O rapaz parecia aturdido. Como assim...?
Você é apenas uma alma agora. Djinns devoram almas, está lembrado?
Ah... Joshua engoliu em seco. Então você vai...?
Te devorar? Ele inclinou a cabeça para a direita. Vou. Entretanto, eu queria ter contado tudo o que eu acabei de contar. Queria que você pudesse se for sorrindo.
Joshua olhou para baixo. Aceitar a morte não era uma tarefa fácil. Porém, com uma sensação de tarefa cumprida, ele poderia dizer adeus à vida.
Eu lhe agradeço por tudo o que fez por mim... O rapaz começou. Mesmo não precisando ser, você me foi de grande ajuda. Ele olhou para o rosto do Djinn e sorriu. Muito obrigado...
Porém...? A criatura indagou, já prevendo que Joshua não havia terminado de falar.
Porém... Ele respirou fundo. Eu gostaria de ver Adriana uma última vez.
Isso não será possível.
Ah... Por que não?
A alma dela não existe mais. Eu mesmo a devorei. Ele disse, novamente, como se não fosse nada. Fui eu que garanti o desejo dela. Porém, diferentemente de você, eu não tinha interesse em manter-la por aqui. Não parecia valer a pena, sabe?
Hm... Joshua sentiu uma pontada de raiva. Ele cerrou os punhos, porém, respirou fundo e tentou se acalmar. Certo... Mas e quanto ao corpo físico dela? Aquele que você salvou de Gehenna?
Está como o seu, meu caro Joshua... Disse uma nova voz.
O rapaz e o Djinn se voltaram na direção da voz.
Agora, junto com eles na plataforma, estava o que poderiam presumir ser um anjo. A mulher tinha mais de um metro e setenta de altura. Ela trajava um terno cinza e vestia uma camisa azul clara por baixo. Seus olhos eram verdes claros como o céu da manhã. Os cabelos eram loiros, longos e compridos com uma auréola flutuando gentilmente acima deles. Seu rosto era belo com uma expressão serena. Nas costas, um grande par de asas brancas pareciam faziam sua figura parecer ainda mais imponente.
Morto. O anjo disse simplesmente.
Ah... Joshua se recusou a acreditar naquilo. Não... O Djinn disse que a salvou...
Ele apenas adiou a morte dela. O ser alado retrucou. Ele...
O que você está fazendo aqui!? O Djinn indagou claramente irritado. Você não deveria mais interferir!
Normalmente não... Outra voz disse.
Novamente, Joshua e o Djinn se voltaram na direção do novo desconhecido.
Agora, o que parecia ser um demônio estava entre eles. O homem tinha mais de um metro e oitenta de altura. Ele trajava um terno preto e usava uma gravata vermelha escarlate. Seus olhos castanhos brilhavam. O cabelo negro desgrenhado não servia para esconder os chifres que saiam de sua cabeça. Seu rosto tinha uma expressão descontraída, além da barba por fazer e o sorriso charmoso. Nas costas, o grande par de asas de pernas negras eram intimidadores.
Mas você, Joshua, é um caso tão especial. Ele riu. Raramente vemos almas valorosas como a sua.
E é claro que você tinha que vir também... O Djinn parecia ainda mais irritado.
Esperem... Joshua olhou para o anjo e para o demônio. Após alguns instantes, ele se lembrou. São vocês que eu vi assim que cheguei ao Plano Espiritual.
Precisamente. O anjo respondeu. Nós lhe demos as duas opções que, no fim, você não aceitou.
E aí você correu pra longe. Disse o demônio. E aí caiu nas garras desse Djinn.
E agora a alma dele é minha! A criatura vociferou.
No mesmo instante, Joshua caiu de joelhos, sentindo-se tonto. Ele sentia sua energia sendo drenada pelo Djinn.
Seria sua se você tivesse comido logo. O demônio retrucou.
Como você resolveu postergar a sua, digamos, sentença... O anjo sorriu. Nós temos uma segunda chance para convencê-lo a seguir o nosso caminho.
Absurdo! Protestou o Djinn.
Reclama com o chefe. Disse o demônio e apontou para a cima. Bem... Ele apontou para o anjo. Mais chefe dela do que meu, mas... Deu pra entender, não é?
Viemos apenas para cumprir nosso dever. Disse o anjo. Fazer o que é justo. Tente não atrapalhar.
Que complô é esse contra mim!? O Djinn esbravejou. Seus desgraçados! Vocês preferem se unir do que me deixar ganhar!?
Olha, acho que a resposta é bem óbvia... O demônio caçoou. Mas se você quiser que eu desenhe, eu posso fazer isso sem problemas.
Maldito... A criatura grunhiu.
Por mais poderoso que o Djinn fosse, era óbvio que ele não poderia fazer nada contra um anjo e um demônio unidos. Joshua podia ver isso claramente, apesar de um aturdido por tudo estar acontecendo tão rapidamente.
Joshua. O Anjo chamou o jovem. O Djinn salvou sua amada de Gehenna. Porém, ele a abandonou no seu mundo. Sem você, e depois de tudo o que ela passou, ela não desejava mais viver. Meus pêsames, mas ela acabou por tirar a própria vida.
Mas é claro que esse desgraçado já sabia que isso aconteceria. O demônio trincou os dentes. Se você estivesse satisfeito, ele poderia devorar a sua alma. Isso é parte do trato. Te enganando, tudo daria certo pra esse cretino.
Mas ele poderia ter morrido feliz! O Djinn retrucou. Agora, por causa de vocês, ele não pode mais! Ele...!
Por quê...? Joshua murmurou.
O anjo, o demônio e o Djinn se voltaram para o rapaz.
Por que eu tenho que continuar sofrendo? Ele indagou. Por que a minha alma é tão importante para vocês? Por que eu não posso morrer em paz? Por quê!?
Ainda há salvação. Disse o anjo.
Ou você continuar vivendo. Propôs o demônio. Sem o medo de morrer. Sem sentir dor, medo, fome, sede... Apenas pense nisso.
Você não vai querer firmar um trato com um demônio. Ela retrucou.
Eu consigo sentir a sua ira. Ele ignorou o anjo e continuou a falar. Eu consigo sentir a vontade que você ainda tem de viver. Não tente se enganar. Não diga que você quer morrer. Você não quer a saída mais fácil, acredite em mim.
O anjo propunha o fim de todo o sofrimento. Joshua queria aquilo. Ou, pelo menos, era o que ele queria dizer. Afinal, no fundo, ele queria continuar a viver. Se nunca mais sofresse, não teria do que reclamar. Além disso, toda a raiva que ele sentia após tudo o que passou, ainda mais vendo que todo o seu sacrifício foi em vão, parecia queimar dentro de si.
Com um sorriso sinistro no rosto, Joshua se levantou e andou até o demônio.
Com um aperto de mão, eles firmaram o contrato.
Você não vai se arrepender. Aquelas foram as últimas palavras do demônio antes dos dois desaparecerem em um vórtice de fogo e sombras.

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