13.
Poderiam ter passado minutos ou horas. Ele não tinha como
saber.
Joshua acordou abruptamente. Com os olhos arregalados e
respiração pesada, ele parecia ter acabado de se salvar de um afogamento.
Lentamente, o rapaz se levantou e, inevitavelmente, olhou
para sua frente.
A imponente montanha de escombros estava a sua frente.
Além dela, estava a única saída conhecida do lugar, agora, inacessível. Sob
ela, estavam três corpos.
—
Desculpem-me... —
Joshua disse baixo pensando em Richard e Cristina, quase como se orasse pelos
dois. — E...
Principalmente... Obrigado...
De repente, o rosto de Behemoth veio em sua mente. Joshua
trincou os dentes. Porém, logo se acalmou. A risada do maníaco não mais veio o
perturbar.
—
Adeus. — Joshua disse
secamente para Behemoth.
Então, o rapaz se voltou para trás. Agora, a passagem
estava livre. Se não houvessem mais surpresas, ele logo estaria junto de
Adriana.
Com passos rápidos, Joshua subiu as escadas, degrau
seguido de degrau, até chegar a uma porta de madeira. A aparência velha e
quebradiça dela era um bom sinal. Afinal, se ela estivesse trancada, não
deveria ser difícil derrubá-la.
Entretanto, não foi preciso. Joshua girou a maçaneta
redonda lentamente e, emitindo um rangido agudo, a porta se abriu.
Cautelosamente, o rapaz entrou na nova sala.
Joshua foi então surpreendido pelo cenário.
A sala, apesar de não ser muito grande, era digna de
fazer parte da mansão. O papel de parede vermelho, o chão de madeira tão limpo
que parecia brilhar, os candelabros dourados acesos nas paredes, o grande lustre
no teto, a luz do luar que entrava gentilmente pela janela, junto às cortinas
de seda. Tudo parecia perfeito demais.
—
Lindo, não? — Disse
uma voz familiar.
Joshua se voltou para trás, já esperando por Margareth.
Entretanto, a visão o deixou atordoado.
Uma mulher que mais parecia ser uma princesa saída de um
conto de fadas sorria para o rapaz. Ela usada um longo vestido de cetim azul
como o céu da manhã. Sobre seus cabelos castanhos avermelhados, uma tiara
prateada reluzia. O colar de pérolas em seu pescoço era tão belo quanto seu
sorriso. Sua pele era tão branca e suave quanto algodão. Seus olhos verdes
pareciam esmeraldas.
—
Lindo... — A mulher
repetiu. — Mas não
passa de uma ilusão...
Quando ela terminou de dizer aquelas palavras, a sala se
transformou completamente.
Tudo escureceu. A luz dos candelabros se tornou fraca,
quase morta. A luz da lua parecia ter sido coberta por nuvens negras. Agora,
Joshua mal conseguia ver a mulher a sua frente.
—
Mas gostamos de nos enganar, não? —
Ela continuou a dizer. —
Gostamos do belo, seja real ou idealizado, não é mesmo?
Joshua sentiu seu corpo tremendo. Da janela, apenas
rajadas de ventos frios e impiedosos vinham. O rapaz sentia o seu corpo mais
frio a cada instante que se passava.
—
Você saindo daqui com ela nos braços... —
A mulher riu. — Quão
romântico... E improvável. Mas... Acreditar nisso é o que te faz seguir em
frente... — Nesse
instante, o rosto de Margareth surgiu dentre as sombras, pálido, como se
emitisse uma luz alva e fantasmagórica. —
Não é mesmo!?
Joshua caiu para trás, sentado, com o coração disparado
dentro do peito.
Margareth gargalhou enquanto o resto da sala se iluminava
lentamente. Todo o belo cenário estava definhado, tão decrépito quanto a
própria assombração que ria.
—
Você pode ter sobrevivido até agora, caro Joshua... — Disse Margareth. — Mas eu o asseguro que, entre você e sua
amada, apenas um sairá daqui vivo.
—
Se esse for o caso... —
O rapaz disse enquanto se levantava, recuperando-se do susto e encarando o
monstro sem medo. —
Eu morrerei para salvá-la.
—
Ah... — O rosto dela
se contorceu com desgosto. —
Claro que vai... —
Ela zombou. — Como se
você fosse capaz de fazer isso...
—
Você verá.
—
Não. O que eu verei é você sofrendo... O que eu verei é você fracassando... O
que eu verei é você em agonia nos seus últimos instantes de vida... — Margareth exibiu um largo
sorriso. — Você
verá...
Lentamente, ela desapareceu diante dos olhos de Joshua,
como se desfizesse e se misturasse com o ar.
Antes que o rapaz pudesse pensar em qualquer coisa, o
grito de Adriana soou.
Alarmado, Joshua correu em direção a única nova porta do
lugar. Aquela tinha que ser a passagem que o levaria até sua amada.
Com a porta aberta, o rapaz viu a sala sombria a sua
frente e, no centro dela, uma escada em caracol. O único caminho era descer os
velhos degraus de madeira.
Como som de mais um grito de desespero de Adriana, Joshua
esvaziou sua mente de todos os pensamentos.
Desesperado, ele correu escadas abaixo, pisoteando em
cada degrau e os ouvindo ranger como o crepitar de uma fogueira.
Após o que pareceu ser uma eternidade, Joshua chegou a um
pequeno corredor de pedra que mais parecia ser parte de um antigo castelo. O
lugar, fracamente iluminado, apresentava dois caminhos possíveis para o rapaz.
À esquerda havia uma porta de madeira fechada. Á direita havia uma porta que
havia sido derrubada. Talvez aquilo fosse obra de Behemoth.
Entretanto, Joshua não olhou para a esquerda uma segunda
vez. Afinal, na pequena sala revelada pela porta à direita estava uma mulher de
longos cabelos castanhos trajando uma camiseta preta, calças jeans e botas
beges.
Ele parecia não acreditar. Joshua estava, agora, a apenas
alguns metros de distância de sua amada.
A mulher, entretanto, não parecia bem. Presa por
correntes de aço nos pulsos e tornozelos, Adriana não conseguia nem mesmo olhar
para frente. Com as roupas em frangalhos, pele extremamente pálida e a cabeça
baixa, era difícil dizer se ela ainda vivia.
—
Adriana... — Ele
murmurou. —
Adriana...
Lentamente, Joshua andou até a sua amada. Com a voz
sumindo, ele chamou por Adriana, esperando uma resposta, tentando manter as
esperanças.
Em pouco tempo ele estava lá, em frente à mulher que
amava.
Sem receber uma resposta, o rapaz caiu de joelhos.
—
Adriana... — Joshua
conseguiu dizer. —
Meu amor... Não...
—
Ela ainda está viva. —
Disse Margareth.
Joshua se voltou para trás, ainda de joelhos.
—
Ela só está fraca. —
A assombração continuou. —
Sabe... Behemoth não é muito bom em cuidar de seus bichinhos...
Joshua voltou o seu olhar para Adriana. Podia ter sido
apenas impressão dele, mas ele jurou ver sua amada respirar, mesmo que muito
fraca, inflando e desinflando o peito lentamente.
—
Adriana... — O rapaz
tocou gentilmente nos cabelos castanhos dela. —
Vou te tirar daqui... Nós voltaremos para o nosso mundo juntos...
—
Eu adoraria te ver tentar fazer isso... —
Margareth zombou.
Enfurecido, Joshua se levantou e encarou o monstro sem
olhos na saída da sala.
—
E você? — O rapaz
indagou. — Não vai
fazer nada? Vai apenas ficar me perturbando como uma mosca?
—
Insolente... —
Margareth trincou os dentes. —
Caso você não tenha percebido, eu não mato com as minhas próprias mãos. Não,
não... Meu trabalho é trazer monstros até vocês, humanos. Aí sim vocês são
mortos. — Ela abriu
um largo sorriso. —
Como você acha que Behemoth te achou? Posso lhe garantir que não foi por
acaso...
—
Hm... — Joshua
pareceu chocado. Entretanto, aquilo foi por apenas um segundo. — E então? Quem você vai
chamar? Behemoth não virá dessa vez.
—
Morto ele não está. —
Retrucou Margareth. —
Eu ainda posso sentir sua presença. Afinal, ele está tão perto... E tão ferido.
Vai demorar um pouco pro grandalhão voltar à ativa. Entretanto, tenho outros
amigos que podem cuidar de você. Apenas espere. Espere e...
Ela não conseguiu terminar de falar. Uma lâmina em formato
de lua crescente atravessou seu peito.
Margareth olhou para baixo sem poder acreditar.
Lentamente, ela levou as mãos à fria lâmina da foice.
—
Ninguém virá por você. —
Disse Estmund. — Eu
mesmo me certifiquei disso.
Bruscamente, o ceifador retirou a lâmina de sua arma do
corpo de Margareth.
Com um último grito de pavor, ela se desfez em um punhado
de pó.
Em questão de segundos, não havia mais resquícios de
Margareth.
Joshua caiu de joelhos e, então, olhou maravilhado para
Estmund que, lentamente, se aproximava do jovem.
—
É... É você mesmo? —
O rapaz indagou.
—
Ora... — O ceifador
sorriu. — Mas é claro
que sou.
—
Ah... Obrigado.
—
Não precisa agradecer.
—
Você... Você acabou de me salvar. —
Ele riu. — A Morte acabou de salvar a minha vida.
Joshua riu novamente, alegre como nunca.
Entretanto, toda a felicidade abandonou sua face quando
ele sentiu a ponta da Lamina gelada da foice de Estmund contra a sua pele.
—
Veja bem... — A
feição do ceifador se tornou séria. —
Minha intenção não é salvar a sua vida. Apenas quis salvar a sua alma, entende?
Salvá-la para que, no fim, ela seja minha. E, esteja certo de que este é o
fim... Para você e sua amada, pelo menos.
14.
—
Ah... — Joshua olhou
boquiaberto para o ceifador. —
Como assim...?
—
Consumir almas torna a nós, ceifadores, mais poderosos. — Estmund respondeu. — Entretanto... É contra as regras, sabe?
Afinal, nosso trabalho é garantir que as almas cheguem ao Plano Espiritual. Não
cabe a nós decidir o destino de vocês. E, é claro, a proibição do consumo de almas
faz com que os ceifadores menos experientes, como eu, sejam mantidos sob o
controle dos mais experientes... Como é o caso daquela megera da Morgana. — Ele pareceu irritado,
trincando os dentes, apenas em pensar na ceifadora. Após um instante, ele parecia
mais calmo. —
Enfim... Estamos em um lugar sem regras, abandonado por anjos, demônios, Djinns
e ceifadores... Bem... —
Ele riu. — Abandonado
pela maioria dos ceifadores, pelo menos...
Joshua estava incrédulo. Ele não podia acreditar na
traição daquele que estava sorrindo em sua frente.
—
Mas... Por quê? — O
rapaz indagou com dificuldade. —
Por que fazer tudo isso? Me arrastar pra cá... Arrastar Adriana pra cá... Ter
mentido para mim... —
Ele parecia tentar encontrar as palavras certas. —
Por que tanto trabalho, tanto esforço?
—
Porque é o único jeito. O único jeito que eu posso fugir das regras e dessa
monotonia que é a eternidade. O tempo passa e eu não mudo. Não fico mais forte
nem mais fraco. Não estou nem mais próximo nem mais distante do meu fim. Eu sou
um escrevo que nunca será liberto... —
Ele riu sinistramente. —
Eu tinha que mudar isso se eu não quisesse enlouquecer. Uma vida sem prazeres
não vale a pena ser vivida. Vocês, humanos, sabem disso muito bem. Vocês sempre
acabam quebrando alguma regra, vocês sempre correm riscos para que, no final,
vocês se beneficiem, para que vocês se sintam bem... Para que vocês se sintam
vivos.
—
E isso justifica os assassinatos!?
—
Ah... — Estmund abriu
um largo e aterrorizante sorriso. —
Mas é claro que sim. Consumir as almas é muito prazeroso, sabe? Porém, eu já
esperava por isso. Agora... Ceifar a vida de alguém praticamente petrificado
pelo pavor, alguém que implorou por misericórdia até o último segundo... — Ele gargalhou. — Isso foi um deleite
inesperado, tão prazeroso quanto consumir uma alma... Talvez até mais
prazeroso!
—
Você é louco...
—
Louco!? Por quê!? Por uma vez na vida em fazer o que eu quero!? Por que colocar
finalmente em primeiro lugar!? Por tentar ser feliz!? Hein!?
Joshua queria ter uma resposta decente, mas nada vinha a
mente. Sua mão direita alcançou o revólver prateado em seu bolso. Ele queria
terminar aquela discussão o mais rapidamente possível. Entretanto, ele se
lembrou que não tinha mais balas na arma. Tudo o que ele poderia fazer com ela
era atacar com uma coronhada. Aquilo não seria uma boa ideia contra alguém que
manejava uma foice.
—
Enfim... — Estmund
continuou, parecendo mais calmo. —
O que você diz não mais importa. Em breve você estará morto. E nem tente fugir
dessa vez. Isso é... —
Ele apontou para trás do rapaz, na direção da ainda inconsciente e acorrentada
Adriana. — A não ser
que você pretenda abandoná-la... Porque, nesse caso, eu te permito que você
tente correr um pouco enquanto eu me divirto com ela.
Joshua abaixou a cabeça e cerrou os punhos.
—
Vá... — O rapaz disse
após hesitar um pouco. —
Eu já não me importo mais...
—
Ora... — Estmund
sorriu. — Toda a sua
jornada foi em vão... Mas não me ouça. Salve a sua pele. Seja humano.
Sobreviva.
O ceifador virou as costas para Joshua. Calmamente,
Estmund andou na direção de Adriana.
Entretanto, ele veio abaixo rapidamente.
O mais rápido que pôde, Joshua sacou o revólver e o bateu
contra as costas do ceifador. Instantaneamente, Estmund caiu como se não
tivesse mais vida. Sua foice caiu para o lado. O rapaz exibiu um sorriso
triunfante no rosto.
—
Maldito! — O ceifador
esbravejou enquanto tirava o rosto do rosto do chão. Lentamente, ele se
levantou e encarou a arma nas mãos de Joshua. —
Um brinquedinho dos seus falecidos amigos paranormais, não? Droga... Ele é
efetivo mesmo sem balas... Porém... Você vai precisar das balas se quiser ter
alguma chance...
Estmund não terminou de falar. Joshua atacou mais uma vez
com uma coronhada. Dessa vez, porém, o golpe acertou o rosto do ceifador.
Com um grito de dor, Estmund cambaleou para trás. Ele
levou a mão ao rosto tentando cobrir a ferida. Entretanto, já era tarde. Joshua
havia visto a marca que mais parecia uma queimadura no rosto do ceifador.
Estmund olhou para a sua foice no chão. Rapidamente, ele
se atirou até ela. Porém, antes que ele a alcançasse, Joshua conseguiu aparecer
na frente do ceifador. Dessa vez, entretanto, o golpe não foi uma simples
coronhada. Friamente, ele segurou a arma contra a face do inimigo que gritava
incontrolavelmente.
Após um instante, porém, Joshua soltou o ceifador. O
rapaz estava sentindo náuseas, com o rosto claramente perturbado. Os gritos de
Estmund não o afetaram. Entretanto, a sua pele, que derretia e se soltava da
face, liberando um odor pútrido, deixou o rapaz horrorizado.
Joshua respirou fundo, tentando se recuperar da visão
aterrorizante do rosto do velho Estmund se desfazendo.
De repente, o rapaz percebeu que os gritos de dor do
ceifador se transformaram em risos estridentes.
Joshua olhou na direção de Estmund. Seu terno cinzento
estava escurecendo, tornando-se negro e, estranhamente, deixando de ser sólido.
O tecido negro parecia inconstante, tremeluzindo como chamas enquanto a carne
podre de seu corpo caia aos poucos.
—
Sabe... — A voz do
ceifador estava distorcida. Entretanto, ele não parecia sofrer com o que
acontecia consigo. —
Esse lugar, Gehenna como alguns chamam, é um labirinto até mesmo para mim. Se
você tivesse escolhido fugir, você poderia ter se salvo, voltado ao seu mundo,
como já fez antes, e tentado o seu melhor para nunca mais cair aqui. Eu nunca
mais poderia encostar um dedo em você, ainda mais porque estariam de olho em
mim. — Enquanto o
cabelo e os pelos da barba iam caindo, chifres de touro iam surgindo do topo de
sua cabeça. — Mas por
causa de uma humana qualquer... Você decidiu morrer. — Seus ossos começaram a se tornar mais largos
e grossos conforme mais pedaços de carne podre se soltavam por entre suas
roupas que, agora, pareciam mais chamas negras que bruxuleavam rapidamente. — Mas não posso reclamar,
sabe? Com você aqui, tenho mais uma presa para eu poder me divertir, mais uma
deliciosa alma para comer e, também, não levanto tanta suspeita já que eu não
vou deixar nenhum sobrevivente, não é mesmo?
Nesse momento, Estmund parou de falar. Ele levou as mãos
ao rosto e, sem hesitar, começou a puxá-lo para frente. Seu crânio foi se
alongando enquanto seus olhos derretiam e escorriam junto com a carne
fumegante. Seus dentes foram se alongando até se transformarem em presas.
Joshua agora olhava sem reação para a criatura em sua
frente. O esqueleto tinha longos e grossos ossos que mais pareciam uma armadura
coberta de sangue. Seu crânio mais parecia com o de um crocodilo agora, com a
diferença dos chifres pontiagudos. Seus olhos eram buracos ocos e negros como
os dos monstros de Gehenna. As chamas negras que envolviam seu corpo se
organizaram na forma de uma longa capa esfarrapada. Sua foice havia voltado
para suas mãos, agora, porém, ela estava diferente: mais longa, com o cabo
irregular e com a lâmina ainda maior e mais afiada.
—
Então, garoto... —
Estmund disse com a voz ainda mais profunda e distorcida. — Está pronto? Pronto para
temer a morte? Pronto para agonizar durante os seus últimos momentos de vida!?
—
Não vou mais fugir. —
Joshua disse secamente.
—
Ha! — Ele exclamou. — Queria que sua amada
estivesse consciente pra ouvir você sendo tão heróico...
Estmund se voltou para trás, na direção de Adriana. Sua
face não tinha como demonstrar a surpresa por ver que a mulher não mais estava lá.
—
Como...? — O
monstruoso ceifador tentava entender aquilo.
Joshua, agora, também olhava para onde sua amada estava.
As correntes estavam intactas no lugar. Ela havia simplesmente desaparecido de
lá, sem explicação aparente. Entretanto, aquilo fez com que o rapaz pudesse
respirar aliviado. Mesmo sem saber o que havia acontecido, nada poderia ser
pior para Adriana do que permanecer.
—
Mais algum amiguinho paranormal te ajudando!? —
Estmund indagou. —
Hein!?
—
Não até onde eu saiba. —
Joshua respondeu calmamente.
—
Droga...! Tenho que achá-la antes que ela escape...
—
Se é que ela já não escapou...
Estmund olhou o rapaz nos olhos. Sua calma naquele
momento era inexplicável para o ceifador.
Com um golpe violento e um urro, Estmund atacou
rapidamente. Sua foice se cravou no peito de Joshua. Pela primeira vez, o
ceifador não via uma de suas vítimas se contorcer de dor ou medo. O rapaz havia
aceitado calmamente a sua morte.
Bruscamente, Estmund puxou sua foice de volta, deixando o
corpo de Joshua cair no chão, sem vida, sem alma.
15.
Joshua acordou com um sobressalto.
Sua respiração estava rápida e pesada, quase como se
tivesse sido salvo de se afogar por pouco.
Com o coração batendo freneticamente dentro do peito o
rapaz olhou em volta. Ele se encontrava em uma plataforma circular que parecia
ser feita de mármore. Ao seu redor, um céu escuro e estrelado adornado com mais
plataformas brancas e escadarias.
Joshua, aturdido, levou uma mão a cabeça. Uma enxaqueca o
atingia sempre que ele tentava se lembrar do que havia acontecido.
—
Tente não se mexer. —
Disse uma voz profunda atrás do rapaz.
Ele nem conseguiu reagir. Rapidamente, uma dor aguda o
atingiu na nuca, paralisando o seu corpo. De repente, um turbilhão de
pensamentos o atingiu.
Milhões de cenas passaram rapidamente diante de seus
olhos. Em questão de segundos, porém, tudo estava claro. O rosto de Adriana
veio em sua mente, bem como as ruas de Gehenna, o velho vizinho que revelou ser
um ceifador, Morgana o guiando até Cristina e
Richard, o casal sendo morto um de cada vez, o teto
desabando sobre Behemoth, Margareth sendo morta por Estmund e, por fim, a dor
que ele sentiu quando a foice dele atravessou seu peito.
—
Ora... Creio que funcionou... —
A voz disse novamente.
Ofegante, Joshua se voltou para trás, encarando seu
interlocutor. Entretanto, uma expressão de estranhamento surgiu no rosto do
jovem.
A criatura a frente dele era no mínimo curiosa. Parecia
uma pessoa, com o corpo humanóide, sentada de pernas cruzadas. Sua altura
passava dos três metros. Entretanto, não era possível distinguir seu gênero.
Seu corpo parecia ser transparente ou, pelo menos, se mesclava com a cor do céu
escuro e estrelado. Toda a superfície de sua face era lisa: sem olhos, orelhas,
nariz, boca ou cabelo.
—
Ah... — A criatura inclinou
a cabeça para a esquerda. Sua voz parecia vir de algum lugar de sua cabeça,
ecoando gravemente, apesar de não ser visível. —
Você parece estar bem ciente do que está acontecendo a sua volta agora... Creio
que é uma boa hora para que as explicações comecem, não acha?
—
Hm... Claro... —
Joshua murmurou ainda um pouco confuso. —
Então, me responda... Quem é você? Ou melhor... O que é você?
—
Um Djinn. — Respondeu
uma voz familiar.
Joshua olhou para a esquerda, por cima de seu ombro, e
viu Morgana se aproximando, caminhando exuberante com seu vestido negro e foice
em mãos.
—
Ceifadora... — O
Djinn parecia contente. —
Creio que aquele assunto está terminado.
—
Sim, está. — Ela
afirmou.
—
Que assunto? — Joshua
indagou.
—
Fui dar um fim ao Estmund. —
Morgana olhou para a própria foice um pouco melancólica. — Ele não poderia sair
impune depois de tudo o que fez. —
Ela olhou para o Djinn. —
E eu tenho você a agradecer.
—
Apenas fiz o que eu julguei ser certo. —
A criatura respondeu. —
E, sinceramente, eu nunca gostei muito dele.
—
Entendo... — Morgana
olhou para Joshua e, então, voltou-se novamente para o Djinn. — Enfim, prossiga com as
explicações. Gostaria de ver a reação do humano, porém, o trabalho me chama.
—
Claro, claro... — O
Djinn murmurou.
Rapidamente, um portal se abriu e Morgana deixou o local.
Entretanto, antes disso, por apenas uma fração de segundos, ela olhou para
Joshua. A ceifadora parecia temer o pior.
—
Então... — A criatura
continuou. — Sim, eu
sou um Djinn. Mais especificamente, aquele que ficou com a sua alma.
—
Com a minha alma...? —
O rapaz parecia confuso. —
Você quer dizer... Você ficou com a minha alma depois que Estmund a tirou de
mim?
—
Não. Eu fiquei com a sua alma após fazermos o nosso trato.
—
Trato...? Mas... Que trato?
—
Ora, creio que já te falaram sobre isso. Morgana ou Estmund. Um dos dois deve
ter mencionado o trato que os humanos fazem com um Djinn, certo?
—
Sim... Mas, então... —
Joshua parecia não acreditar. —
Você quer dizer que... Eu já havia morrido antes?
—
Mas é claro. E aí está você agora. Em sua forma espiritual.
—
Você quer dizer que eu estava vivo apenas com o meu corpo físico...? Todo esse
tempo...?
—
Sim. Desde antes de você conhecer sua amada Adriana.
—
Hm... — Joshua levou
as mãos à cabeça. Ela doía acreditar naquilo. —
Não... Não faz sentido... Eu... Eu deveria me lembrar, certo? Eu deveria me
lembrar do nosso trato, não é!?
—
Normalmente, sim. Mas você foi um caso especial.
—
Por quê...?
—
Por que você pediu para não se lembrar.
—
Hã...? Por que isso?
—
Você queria provar que você poderia se sacrificar para salvar alguém que você
amasse. E, para isso, você não queria nenhum tipo de assistência, ninguém te
lembrando do que fazer. Afinal, você tirou a própria vida da primeira vez por
não conseguir viver com a culpa, por não conseguir viver sabendo o quão fraco e
covarde você foi...
Joshua caiu de joelhos. A cada palavra proferida pelo
Djinn, mais imagens e sons voltavam para a sua mente. Em questão de segundos,
um curto filme estava passando diante de seus olhos.
Abigail era o nome dela. Ela era tão linda quanto
Adriana, pelo menos, aos olhos de Joshua. Tudo parecia ser um conto de fadas
entre os dois. Entretanto, tudo mudou no dia do acidente.
Um incêndio tomou conta do prédio onde o casal morava.
Tudo parecia ter vindo abaixo rapidamente. Vendo Abigail presa debaixo dos
escombros, Joshua ficou paralisado. Entre as chamas e o calor sufocante, ele
temeu pela própria vida. Impotente, ele acabou abandonando sua amada.
Os olhos tristes e assustados de Abigail eram a última
lembrança deixada por ela, algo que torturaria Joshua pelo resto de sua
primeira vida. Entretanto ninguém podia realmente culpá-lo. Seus amigos,
família e até os familiares de sua amada. Ninguém poderia exigir que ele
tivesse se arriscado tanto, afinal, ele poderia não ter sobrevivido. Porém, não
ter sobrevivido era exatamente o que ele queria.
Imerso em uma depressão sem fim, caçado por pesadelos
agonizantes e torturado pelos lembretes de sua fraqueza e covardia, Joshua
resolveu tirar a própria vida.
—
Mas não há motivo para se sentir mal. —
Disse o Djinn calmamente após alguns instantes. —
Afinal, você conseguiu fazer o que você não pôde antes.
Joshua levantou a cabeça lentamente na direção do Djinn.
—
Você foi até Gehenna, humano. —
Ele continuou. — Um
lugar considerado pior que o inferno. E você voltou lá por vontade própria.
Isso apenas para salvar sua amada. —
O Djinn pareceu rir contente. —
Você enfrentou um monstro sedento de sangue, praticamente indestrutível, e
seguiu em frente mesmo sozinho. Você até bateu de frente contra Estmund! Você é
uma lenda entre os humanos, rapaz. Pelo menos, aqui no Plano Espiritual.
Joshua não pôde conter um sorriso. Tantos elogios depois
de tudo o que ele passou eram, claramente, bem vindos. Entretanto, haviam ainda
perguntas a serem respondidas.
Os olhos do rapaz se arregalaram quando ele se lembrou
dos eventos que ocorreram instantes antes de sua segunda morte.
—
Adriana...! — Ele
exclamou. — O que
aconteceu com ela!? Ela não estava mais lá quando eu estava prestes a
morrer...!
—
Eu a tirei de lá. — O
Djinn respondeu como se não fosse nada. —
Aproveitei o momento em que você estava enfrentando Estmund e a trouxe de volta
ao seu mundo.
—
Ah... — Joshua sentiu
um peso enorme saindo de cima de seus ombros. Ele respirou aliviado e sorriu. — Obrigado... — Ele conseguiu dizer. — Muito obrigado.
—
Não precisa agradecer. Apenas fiz o que me pareceu ser o certo. E com isso eu
quero dizer que fiz o que eu gostaria de ter feito. Simples assim. Aliás, foi
por isso que eu o mantive vivo.
—
Hã...? — O rapaz
parecia aturdido. —
Como assim...?
—
Você é apenas uma alma agora. Djinns devoram almas, está lembrado?
—
Ah... — Joshua
engoliu em seco. —
Então você vai...?
—
Te devorar? — Ele
inclinou a cabeça para a direita. —
Vou. Entretanto, eu queria ter contado tudo o que eu acabei de contar. Queria
que você pudesse se for sorrindo.
Joshua olhou para baixo. Aceitar a morte não era uma
tarefa fácil. Porém, com uma sensação de tarefa cumprida, ele poderia dizer
adeus à vida.
—
Eu lhe agradeço por tudo o que fez por mim... —
O rapaz começou. —
Mesmo não precisando ser, você me foi de grande ajuda. — Ele olhou para o rosto do Djinn e sorriu. — Muito obrigado...
—
Porém...? — A
criatura indagou, já prevendo que Joshua não havia terminado de falar.
—
Porém... — Ele
respirou fundo. — Eu
gostaria de ver Adriana uma última vez.
—
Isso não será possível.
—
Ah... Por que não?
—
A alma dela não existe mais. Eu mesmo a devorei. —
Ele disse, novamente, como se não fosse nada. —
Fui eu que garanti o desejo dela. Porém, diferentemente de você, eu não tinha
interesse em manter-la por aqui. Não parecia valer a pena, sabe?
—
Hm... — Joshua sentiu
uma pontada de raiva. Ele cerrou os punhos, porém, respirou fundo e tentou se
acalmar. — Certo...
Mas e quanto ao corpo físico dela? Aquele que você salvou de Gehenna?
—
Está como o seu, meu caro Joshua... —
Disse uma nova voz.
O rapaz e o Djinn se voltaram na direção da voz.
Agora, junto com eles na plataforma, estava o que
poderiam presumir ser um anjo. A mulher tinha mais de um metro e setenta de
altura. Ela trajava um terno cinza e vestia uma camisa azul clara por baixo.
Seus olhos eram verdes claros como o céu da manhã. Os cabelos eram loiros,
longos e compridos com uma auréola flutuando gentilmente acima deles. Seu rosto
era belo com uma expressão serena. Nas costas, um grande par de asas brancas
pareciam faziam sua figura parecer ainda mais imponente.
—
Morto. — O anjo disse
simplesmente.
—
Ah... — Joshua se
recusou a acreditar naquilo. —
Não... O Djinn disse que a salvou...
—
Ele apenas adiou a morte dela. —
O ser alado retrucou. —
Ele...
—
O que você está fazendo aqui!? —
O Djinn indagou claramente irritado. —
Você não deveria mais interferir!
—
Normalmente não... —
Outra voz disse.
Novamente, Joshua e o Djinn se voltaram na direção do
novo desconhecido.
Agora, o que parecia ser um demônio estava entre eles. O
homem tinha mais de um metro e oitenta de altura. Ele trajava um terno preto e
usava uma gravata vermelha escarlate. Seus olhos castanhos brilhavam. O cabelo
negro desgrenhado não servia para esconder os chifres que saiam de sua cabeça.
Seu rosto tinha uma expressão descontraída, além da barba por fazer e o sorriso
charmoso. Nas costas, o grande par de asas de pernas negras eram intimidadores.
—
Mas você, Joshua, é um caso tão especial. —
Ele riu. — Raramente
vemos almas valorosas como a sua.
—
E é claro que você tinha que vir também... —
O Djinn parecia ainda mais irritado.
—
Esperem... — Joshua
olhou para o anjo e para o demônio. Após alguns instantes, ele se lembrou. — São vocês que eu vi assim
que cheguei ao Plano Espiritual.
—
Precisamente. — O
anjo respondeu. — Nós
lhe demos as duas opções que, no fim, você não aceitou.
—
E aí você correu pra longe. —
Disse o demônio. — E
aí caiu nas garras desse Djinn.
—
E agora a alma dele é minha! —
A criatura vociferou.
No mesmo instante, Joshua caiu de joelhos, sentindo-se
tonto. Ele sentia sua energia sendo drenada pelo Djinn.
—
Seria sua se você tivesse comido logo. —
O demônio retrucou.
—
Como você resolveu postergar a sua, digamos, sentença... — O anjo sorriu. — Nós temos uma segunda
chance para convencê-lo a seguir o nosso caminho.
—
Absurdo! — Protestou
o Djinn.
—
Reclama com o chefe. —
Disse o demônio e apontou para a cima. —
Bem... — Ele apontou
para o anjo. — Mais
chefe dela do que meu, mas... Deu pra entender, não é?
—
Viemos apenas para cumprir nosso dever. —
Disse o anjo. — Fazer
o que é justo. Tente não atrapalhar.
—
Que complô é esse contra mim!? —
O Djinn esbravejou. —
Seus desgraçados! Vocês preferem se unir do que me deixar ganhar!?
—
Olha, acho que a resposta é bem óbvia... —
O demônio caçoou. —
Mas se você quiser que eu desenhe, eu posso fazer isso sem problemas.
—
Maldito... — A
criatura grunhiu.
Por mais poderoso que o Djinn fosse, era óbvio que ele
não poderia fazer nada contra um anjo e um demônio unidos. Joshua podia ver
isso claramente, apesar de um aturdido por tudo estar acontecendo tão
rapidamente.
—
Joshua. — O Anjo
chamou o jovem. — O
Djinn salvou sua amada de Gehenna. Porém, ele a abandonou no seu mundo. Sem
você, e depois de tudo o que ela passou, ela não desejava mais viver. Meus
pêsames, mas ela acabou por tirar a própria vida.
—
Mas é claro que esse desgraçado já sabia que isso aconteceria. — O demônio trincou os
dentes. — Se você
estivesse satisfeito, ele poderia devorar a sua alma. Isso é parte do trato. Te
enganando, tudo daria certo pra esse cretino.
—
Mas ele poderia ter morrido feliz! —
O Djinn retrucou. —
Agora, por causa de vocês, ele não pode mais! Ele...!
—
Por quê...? — Joshua
murmurou.
O anjo, o demônio e o Djinn se voltaram para o rapaz.
—
Por que eu tenho que continuar sofrendo? —
Ele indagou. — Por
que a minha alma é tão importante para vocês? Por que eu não posso morrer em
paz? Por quê!?
—
Ainda há salvação. —
Disse o anjo.
—
Ou você continuar vivendo. —
Propôs o demônio. —
Sem o medo de morrer. Sem sentir dor, medo, fome, sede... Apenas pense nisso.
—
Você não vai querer firmar um trato com um demônio. — Ela retrucou.
—
Eu consigo sentir a sua ira. —
Ele ignorou o anjo e continuou a falar. —Eu
consigo sentir a vontade que você ainda tem de viver. Não tente se enganar. Não
diga que você quer morrer. Você não quer a saída mais fácil, acredite em mim.
O anjo propunha o fim de todo o sofrimento. Joshua queria
aquilo. Ou, pelo menos, era o que ele queria dizer. Afinal, no fundo, ele
queria continuar a viver. Se nunca mais sofresse, não teria do que reclamar.
Além disso, toda a raiva que ele sentia após tudo o que passou, ainda mais
vendo que todo o seu sacrifício foi em vão, parecia queimar dentro de si.
Com um sorriso sinistro no rosto, Joshua se levantou e
andou até o demônio.
Com um aperto de mão, eles firmaram o contrato.
—
Você não vai se arrepender. —
Aquelas foram as últimas palavras do demônio antes dos dois desaparecerem em um
vórtice de fogo e sombras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário