Fantasma
Eu me virei para trás o mais rápido que pude, o que me
fez perder o equilíbrio e cair sentado no chão com um baque surdo.
Enquanto eu tocava o chão gélido com os dedos de minhas mãos,
eu o vi.
As roupas do garoto eram, no mínimo, incomuns. Cinzentas,
feitas do que me parecia ser algodão, num estilo rústico. Não acredito que
alguém tenha usado alguma roupa como aquela nas últimas décadas. Os pés, entretanto,
estavam descalços. Infelizmente, eu pude ter uma ótima ideia do físico inteiro
dele.
A pele do garoto tinha um tom leve, e desconcertante, de
azul. Seus dedos, braços, pernas e até o rosto eram extremamente magros,
ossudos, como um cadáver.
Seu cabelo preto e liso escorria pela cabeça, cobrindo as
orelhas, parte da nuca e os olhos quase que completamente, fazendo com que
apenas dois brilhos brancos hipnóticos fossem visíveis por entre os fios
negros. Droga. O olhar dele ainda faz calafrios percorrerem a minha espinha.
Porém, a pior parte sobre o garoto eram, sem dúvida, os
lábios. Finos, rachados e da mesma cor da pele do rosto, eu mal os podia distinguir
quando o garoto tinha a boca fechada. Porém, no instante em que os lábios se
afastaram, ele pôde falar:
—
Venha... Mais perto...
Enquanto ele murmurava aquelas palavras, eu comecei,
instintivamente, a me arrastar, ainda sentado, para trás.
Infelizmente, não demorou muito para a minha cabeça e as
minhas costas encostarem-se a algo rígido. A porta. Aquela mesma que era a
única maneira de entrar e sair daquela sala. Aquela porta de aço que eu tinha
certeza que havia sido trancada.
Ou não?
Aquele questionamento foi a coisa mais rápida que cruzou
a minha mente até hoje.
Eu havia ouvido a porta sendo batida com força e sendo
fechada, mas teria ela sido trancada?
O garoto fantasmagórico se aproximava de mim a passos
vagarosos. Mas, sendo que eu não tinha para onde correr, ele iria,
eventualmente, chegar até mim. E eu não queria saber o que aconteceria comigo
caso aquilo acontecesse.
Ainda olhando para o garoto, eu me levantei, apoiando as
minhas costas contra porta para me levantar. Agitado, eu procurei a maçaneta da
porta usando apenas o tato. Eu não podia desviar o meu olhar do garoto.
Uma. Duas. Cinco. Várias vezes eu bati na porta com a
palma de minha mão enquanto eu tentava alcançar a maçaneta. Eu não conseguia
respirar, mas sentia o ar sendo expulso de meus pulmões a cada instante que se
passava.
Eu suava frio. O ar na sala parecia mais pesado, como se
me empurrasse para baixo. Minhas pernas começavam a doer e, rapidamente, já
estavam tremendo.
Não sei quanto tempo havia passado. E nem quero saber.
Apenas sei que, quando minha mão tocou a superfície gelada e arredondada da
maçaneta, eu pude voltar a respirar.
Eu respirava freneticamente, tentando recuperar o fôlego.
Eu girei a maçaneta. A porta não estava trancada. Um sorriso teve ter se
formado em meu rosto. O garoto ainda se aproximava, mas isso não mais importava
para mim.
Em uma fração de segundos, eu puxei a porta enquanto eu
girava, dando minhas costas para o fantasma enquanto eu olhava de volta para o
corredor negro de antes. Aquilo foi um erro.
Alguns míseros instantes em que eu não olhava para o
garoto foram o suficiente. Ele teve liberdade para fazer o que ele quisesse
naquele período menor do que um segundo. Eu podia ser facilmente surpreendido
por causa de meu descuido. E foi isso mesmo o que aconteceu quando eu senti os
meus calcanhares gelarem.
Eu olhei para baixo. Meus olhos se arregalaram. Eu deixei
escapar um grito. Em meio às trevas, algo brilhava fraco. Um par de mãos azuis,
pequenas e esqueléticas me segurava no lugar. Com um misto de frio e medo,
minhas pernas tremeram.
Desesperado, eu tentei correr. Em vão. As mãos me
seguravam com uma força descomunal, quase como se elas estivessem coladas ao
chão.
Minhas pernas, que tremiam, não demoraram muito para
ceder. Eu cai de joelhos no meio da escuridão.
Eu estava pronto para o pior, quando percebi que a
sensação gelada que envolvia os meus calcanhares havia sumido. Eu não estava
mais preso.
Aquele pensamento me deixou aliviado. Pelo menos, por
aquele instante. Um sorriso deve ter se esboçado em meu rosto. Porém, ele não
durou.
Quando eu olhei para frente, lá estava ele.
O garoto. Mais próximo do que nunca. O que me fez começar
a tremer ainda mais.
Um homem adulto, apoiado no chão com as mãos e os
joelhos, com medo de um garoto de seis anos. Parecia uma piada.
Devo admitir que a aparência dele não me incomodava tanto.
Pelo menos, até aquele momento.
O ar gélido e as palavras carregadas de tristeza me
deixavam inquieto. Isso era certo.
A pele azulada, corpo esquelético e cabelo escorrido não
eram tão apavorantes. Porém, eu não havia visto seus olhos.
Agora, bem em minha frente, o garoto pode afastar o
cabelo dos olhos. Agora, eu podia ver as duas cavidades negras, vazias, com um
brilho branco hipnótico no fundo.
Enquanto eu tremia igual a uma criança que havia se
perdido dos pais num shopping, o garoto abriu um sorriso perolado. A aparência já
esquelética dele ficou ainda mais inquietante.
Com um bafo frio no meu rosto, ele disse:
—
Não vá... Ainda não...
Com uma força que eu nem sabia que eu tinha, eu me joguei
para trás. Felizmente, desta fez eu consegui permanecer em pé.
O garoto olhou triste para mim. Pelo menos, eu imaginei
que aquilo fosse uma expressão triste. Difícil de se dizer em uma situação como
aquelas.
Enquanto eu tentava andar para trás, o garoto disse:
—
Não vá... Brinque comigo... Faz tanto tempo que ninguém...
Ele parou de falar. O fantasma percebeu que, aos poucos,
eu estava me distanciando dele, tentando não prestar atenção em suas palavras.
Aquilo, sem dúvida, o irritou, fazendo com que seu rosto se tornasse ainda mais
pavoroso. Agora, a face dele estava contorcida de raiva.
Eu caí novamente sentado. Droga. Minhas pernas estavam
doendo muito. Eu não conseguiria me levantar novamente. E, para piorar, desta
vez, o garoto avançava com passos largos em minha direção.
Eu não conseguiria escapar. Eu não queria ver o que
aconteceria. Eu fechei os meus olhos com força e aguardei o pior.
Silêncio. Nenhum barulho. Eu não ouvi absolutamente nada,
a não ser a minha respiração pesada, por alguns segundos. Mas eu não abrira os
olhos. Disso, eu tinha certeza.
Mas tudo mudou quando eu ouvi aquilo: a risada que
parecia zombar de mim.
No mesmo instante eu abri os olhos. Então, me vi sozinho
naquela sala.
Não havia sinal do fantasma, o que não me deixou
confortável. Eu passei os instantes seguintes olhando para todos os cantos da
sala por algum sinal dele. O fato de ele atravessar paredes, além de poder me
segurar, era, no mínimo, inquietante.
Após um minuto, resolvi me acalmar. Respirei fundo
algumas vezes. Estralei os dedos de minhas mãos e minhas costas. Passei a mão
na minha testa para limpar o suor. E então ouvi uma batida na porta.
Droga. Eu nem tinha percebido que ela havia se fechado.
Ou que alguém a havia fechado.
Outra batida. Eu não estava muito animado para saber
quem, ou o que, estava querendo entrar. Eu sabia que não poderia ser o
fantasma, uma vez que eu já havia o visto atravessar paredes.
Uma terceira batida na porta. Dessa vez, mais forte.
Eu não tinha mais nada a fazer naquela sala. Com isso em
mente, eu andei, cautelosamente, até a porta.
Uma quarta batida. Mais forte do que a última, quase
violentamente. Eu engoli em seco. Lentamente, eu levei minha mão até a maçaneta.
No mesmo instante em que eu toquei a superfície gelada de
metal, mais uma batida veio a porta. Dessa vez, acompanhada de um urro
inteligível.
Eu recuei a minha mão direita, assustado, trazendo-a de
volta para perto de meu corpo.
Mais batidas vieram. Ainda mais fortes, tentando derrubar
a porta. Gritos e urros a acompanharam. Eu tive a sensação que um animal
selvagem estava rugindo do outro lado da porta de aço. Minha espinha gelou
quando novos sons ficaram mais claros.
Gritos de desespero e choros começaram a chorar. Alguém
parecia estar implorando pela própria vida enquanto algo, ou alguém, a matava
lentamente, arrancando suas vísceras e quebrando seus ossos. E eu podia ouvir
tudo aquilo. E eu sabia que aquilo estava acontecendo a poucos centímetros de
mim. Mesmo com uma porta de aço me protegendo, eu não me sentia seguro.
Droga. Eu fiquei paralisado. A porta a minha frente
tremia e era amassada constantemente. E os malditos gritos, rugidos selvagens e
sons de sangue jorrando, ossos sendo triturados e carne sendo rasgada pareciam
se intensificar a cada momento.
Não sei quanto tempo se passou, mas aquilo parou. O
silêncio voltou a reinar naquele lugar.
De repente, senti um líquido morno tocar nos dedos de
meus pés. Eu olhei para baixo. Eu exalei nervoso.
Uma poça de sangue se formava em frente aos meus pés. Eu
comecei a tremer.
Após respirar fundo, percebi que o líquido rubro vinha
por de baixo da porta de aço. Aquele era o sangue do infortunado que havia sido
brutalmente morto há pouco.
Então, a maçaneta girou sozinha. A porta se abriu. Eu
olhei confuso enquanto caminhava em direção a nova paisagem.
Altas árvores robustas e carregadas de folhas. Um céu
noturno adornado por estrelas. O aroma de flores e frutas silvestres que vinha
da floresta. Uma brisa fresca, reconfortante. Um piso de madeira que agora eu
pisava.
Nightmareland não parava de me surpreender. Em alguns
instantes, eu pude perceber que eu estava na varanda de uma modesta casa de
campo.
Eu não queria questionar nada no momento. Aquela mudança
de cenário era muito bem vinda.
Mas, droga, eu ainda estava naquele inferno.
Bem na porta na casa, estava uma carta branca e
luminescente.
“Então você ainda está vivo! Isso é ótimo! Você ainda tem
um monte de coisa divertida pra fazer! Ainda tem muita gente que você tem que
conhecer! E alguns que você tem que conhecer melhor, tipo o que estava atrás da
sua porta agora pouco! Ou aquele outro que quase te estrangulou! Hahaha! Eles
são muitos legais!”.
Mais uma carta agradável daquele demônio sádico. Nada
fora do normal, certo?
“PS: logo, logo, você vai conhecer mais um!”.
Com isso, a mensagem do demônio terminava.
Então, mais uma carta veio por de baixo da porta.
“3”.
Era tudo o que estava escrito na carta.
Logo em seguida, outra veio.
“2”.
Aquilo não estava me agradando.
Mais uma carta passou por de baixo da porta. Eu a peguei,
mas não a abri. Ao invés disso, levei a minha mão até a maçaneta. Trancada.
Aquilo não me surpreendeu. Apenas quis ter certeza de
minha situação.
“1”.
Uma contagem regressiva. Bem como eu esperava. Para o
quê? Isso, eu não sabia. Não naquele momento. Felizmente, ou melhor,
infelizmente, não demorou muito para eu descobrir para o que servia a contagem
regressiva.
Eu já conhecia muito bem aquele som. Jogos e filmes de
terror já haviam me introduzido aquele ruído alto, constante e perturbador.
Ao ouvir o som da motosserra vindo de dentro da casa, eu
corri em direção à floresta.
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