O Prédio
Eu abri meus olhos e deixei um grito escapar. Meu tronco
estava erguido, levemente envergado. Eu apoiava as minhas mãos no chão. Minha
respiração estava pesada e ofegante.
Demorei um segundo para perceber aquilo.
Eu estava em cima de uma cama. Meu corpo estava coberto
por um lençol amarelado. Olhei ao redor, notando o chão velho de madeira
escura, uma escrivaninha e um armário de mogno gastos, além do teto e paredes.
A tinta branca estava claramente descascada.
Pequenos feixes de luz iluminavam o local. Eles entravam
no quarto pelas frestas da persiana.
A julgar pela cor da luz, deveria ser de tarde. Muito
provavelmente, o dia estava nublado. O cheiro de mofo e pó empesteavam o ar que
eu respirava. Não demorou muito para eu começar a tossir.
Droga. Eu não fazia a mínima ideia do que havia
acontecido.
Eu me lembrava claramente do abismo. De pouco em pouco,
eu via o chão se aproximando de mim. O vento soprava, gélido como nunca, contra
as minhas roupas e meu rosto. Os sons dos dois monstros iam sumindo a cada
instante que se passava.
Entretanto, eu não me lembro de ter chego até o chão.
Aliás, eu não sentia nada de anormal.
Cautelosamente, levante-me da cama. Logo em seguida,
comecei a checar o meu corpo. O resultado me deu uma mistura de alívio com
preocupação.
Toda a exaustão que eu havia sentido havia se passado. Os
músculos de minhas pernas, que antes pareciam queimar, estavam perfeitamente
bem agora.
Meus braços, torso e cabeça. Todos estavam perfeitamente
bem.
E agora eu me encontrava em uma cama, tendo acabado de
acordar.
Será que eu teria imaginado tudo aquilo? Todo aquele
sofrimento havia sido apenas um pesadelo? Bem que eu queria...
Por mais que eu quase tivesse sorrido, acreditando
naquela teoria, eu ainda não sabia onde eu estava. Nunca, em toda a minha vida,
eu havia visto aquele quarto.
De repente, eu ouvi o som de algo arranhando as persianas
pelo lado de fora.
O que começaram como alguns leves sons foram, aos poucos,
transformando-se em ruídos. Assim, não demorou muito para aquilo se transformar
em uma sinfonia infernal.
Lentamente, sem tirar os olhos da janela, eu fui me
aproximando da porta do quarto. Passo a passo, com toda a calma possível, eu
encostei minha mão esquerda na maçaneta. Foi aí que a persiana caiu.
Eu parei de respirar por um segundo. Enquanto a persiana
caía no chão, um pequeno vulto com olhos vermelhos entrou no quarto.
Rapidamente, um turbilhão se ruídos veio direto em minha direção.
Eu fechei os olhos, aguardando o pior. Passados alguns
instantes, eu percebi que o silêncio era, agora, praticamente absoluto.
Eu respirei fundo. Um pouco mais calmo, eu resolvi abrir
os olhos. E foi assim que eu o reencontrei.
O mesmo corvo cor de ébano, com olhos escarlates, da
floresta estava bem diante de meus olhos. Eu tinha certeza daquilo, uma vez que
uma carta branca e luminescente estava em seu bico afiado.
Aquilo foi mais do que suficiente para tirar as minhas
dúvidas. Eu realmente havia vivenciado todo aquele inferno.
Rapidamente, tirei a carta do bico da ave e a li.
“Eu tenho duas coisas pra te contar! A primeira é: siga o
corvo!”.
Eu olhei rapidamente para o pássaro. Por mais tenebrosa
que sua aparência fosse, estranhamente, eu não me sentia ameaçado por ele.
Entretanto, calafrios voltaram a percorrer a minha
espinha quando eu li a última frase da carta.
“A segunda é: você não está sozinho!”.
Eu não sabia o que aquele demônio queria dizer com
aquilo. Pelo menos, não naquele instante.
Seria o corvo que me faria companhia? Ou novas
aberrações? Ou, então, mais alguém? Aquilo me fez pensar sobre a possibilidade
de haver mais alguém que, assim como eu, estava preso naquele inferno.
Entretanto, meus pensamentos foram interrompidos pelo
grasnado do corvo. Algo me dizia que ele não ficaria ali me esperando.
A ave negra andou até a porta e começou a bicá-la. Eu não
demorei a entender que ela queria que eu abrisse a porta. E, assim, eu fiz.
Sem perder tempo, segui a ave pela sala de estar. O
cômodo não era muito diferente do anterior. A luz fraca iluminava o ambiente
por entre as cortinas amareladas. A televisão de tubo cinza, o sofá de couro
avermelhado e gasto, os quadros nas paredes e o móvel de carvalho antigo
estavam cobertos por uma camada grossa de pó. O chão era coberto completamente
por um carpete bege sem brilho.
Rapidamente, eu estava em frente a uma porta de cedro com
uma maçaneta dourada. O corvo a bicava inquietamente. Assim, com calma, eu abri
a porta.
Em um instante, tudo havia mudado. Para muito pior, eu
tenho certeza.
Aquela porta era a saída do que eu supus ser um
apartamento. Agora, eu estava no meio de um corredor. Sem dúvidas, ainda mais
decrépito do que aquele após o quarto branco.
O teto, piso e paredes eram amarelados. Rachaduras eram
visíveis para cada lado que eu olhasse. Algumas goteiras do teto faziam gotas
de água cair no chão, preenchendo o ar com um único som. A atmosfera sem vida
do local era, sem sombra de dúvida, inquietante.
O corvo, grasnando, seguiu voando até as escadarias. Apressadamente,
eu fui até ele. Isso é, até eu ouvir aquelas palavras:
—
Olá...
Eu senti os pelos de minha nuca se arrepiarem. O ar ficou
mais frio de repente. Eu engoli em seco.
Certamente, eu não esperava ouvir uma voz como aquela
naquele lugar. Terna, meiga e um pouco aguda. Eu me virei para ver aquilo que
eu não queria.
Cerca de cinco metros de distancia de mim, parada no meio
do corredor, estava ela.
Com um vestido tão branco quanto sua pele, a garota, que
não parecia ter mais de dez anos de idade, sorria. Aquilo começou a me deixar
tonto. O rosto dela não era normal.
Os cabelos longos e lisos eram negros. Pequenos brincos
dourados cintilavam na ponta de suas orelhas. No geral, a menina quase parecia
uma princesa...se não fossem pelos olhos e a boca.
A forma retorcida no formato de uma meia lua era o
sorriso dela. Os dois círculos largos abaixo da testa eram os olhos. As três
partes me lembravam a imagem de uma velha televisão que não funcionava. A tela,
mais escura que o céu da noite, com estática branca na tela, distorcendo o que
passava, enquanto o som zunia em meus ouvidos. E era exatamente assim que eram
os olhos e a boca dela.
Eu demorei a perceber o chamado do corvo. O grasnado
incessante já estava longe, vindo de algum lugar abaixo de mim. Aquilo me fez
olhar rapidamente para as escadarias. Eu tinha certeza que, se eu corresse
escadas abaixo, eu poderia alcançá-lo. Porém, aquilo foi uma péssima ideia.
Eu me refiro a olhar para as escadarias.
Consequentemente, eu desviei o meu olhar da garota.
O mais rapidamente que eu pude, eu olhei de volta na
mesma direção. Ela não estava mais lá, mas eu ainda sentia o ar tão frio quanto
antes.
Não tive dúvidas do que deveria ser feito. O grasnado do
corvo, apesar de longe, ainda podia ser ouvido de onde eu estava. Ele não podia
estar muito longe. Então, corri escadas abaixo.
O suor escorria pelo meu rosto. Minha respiração ficava
cada vez mais ofegante. Meus passos começavam a vacilar. Mesmo assim, eu não
pararia de descer aquelas escadas. Muito menos, diminuiria o meu ritmo. O
grasnado do corvo parecia, a cada lance de escadas que eu descia, um pouco mais
próximo.
Entretanto, minha mente resolveu trabalhar. Eu sabia que
aquilo diminuiria o meu ritmo, mas eu também sabia que, naquele caso, seria
melhor eu parar para pensar um pouco. Afinal, eu não fazia a mínima ideia de
quantos andares aquele prédio tinha.
Por ser um condomínio antigo, imaginei que não demoraria
muito até eu chegar ao térreo. Porém, após todo esse tempo correndo, comecei a
pensar se eu não estava preso em mais algum tipo de armadilha, como foi com os
corredores da casa de antes.
Talvez eu devesse estar fazendo alguma coisa para entrar
em contato com algo. Por exemplo, com aquela garota. Achá-la, ou achar algo que
pertencesse a ela, poderia ser a solução. Aquilo funcionou com o fantasma do
garoto, pelo menos.
Eu nem havia percebido, mas eu havia parado de correr.
Calmamente, eu descia as escadas, degrau por degrau, enquanto pensava sobre
aquilo. E, poucos segundos depois, percebi a ausência de algo. Afinal, eu não
podia mais ouvir o grasnado do corvo.
Eu parei. Estava cansado, não havia como negar.
Calmamente, sentei-me em um degrau enquanto recuperava o fôlego.
Então, eu voltei a ouvir a voz dela:
—
Cansou?
Eu olhei na direção de onde a voz vinha. No fim da
escadaria, poucos metros a minha frente, a garota estava de volta.
Rapidamente eu me levantei. Após uma risada baixa, ela
disse:
—
Venha. Siga-me...
Eu não questionei o pedido dela. Algo me dava certeza de
que aquilo deveria ser feito.
Eu não tinha disposição para correr. E, além disso, eu
teria que seguir apenas uma garotinha. Passadas longas seriam mais do que o
suficiente para acompanhá-la.
Ouvindo os passos leves dela ecoando pelas escadarias, eu
sabia que ela não estava longe. Eu não sabia para onde eu estava indo, mas eu
não me importava. De tudo o que eu já havia enfrentado naquele inferno, seguir
uma garotinha assustadora por umas escadarias não era nada. Foi então que eu me
surpreendi.
O próximo andar abaixo de mim era diferente. A aparência
decrépita era basicamente a mesma. Porém, ele era muito menor. Com exceção da
escadaria por onde eu vim, só haviam outros dois caminhos. Um era um pequeno corredor
que descia uma rampa. No fim dele, havia uma porta de vidro. Aquela me parecia
a saída, mas resolvi não ir até ela. Isso por causa do outro caminho. Era um
elevador.
As portas de aço e o painel com o botão para chamá-lo.
Aquilo era surreal demais para aquele lugar. Mas, principalmente, o elevador
atiçou a minha curiosidade. Afinal, ele estava bem a frente da escadaria.
Assim, deveria existir uma porta que levasse ao elevador nos outros andares. O que
não existia.
Foi aí que eu ouvi o elevador descendo. Aparentemente,
ele conectava esse andar com algum abaixo.
Cerca de trinta segundos depois, eu ouvi o som das portas
se abrindo. Algo...se arrastou para dentro do elevador. Seja lá o que fosse,
era pesado. Ruídos vinham do elevador, como se ele precisasse de mais força
para subir.
Entretanto, eu fui hipnotizado. A voz mais bela que eu já
ouvi em minha vida veio daquele elevador. Eu não sabia o que ela cantava, muito
menos que idioma era aquele. Mas eu não me importava. O som era angelical. Todo
o cansaço me meu corpo se foi. Minha mente pareceu se tornar mais calma. Meu
corpo, mais leve. Os pelos de meus braços começaram a se arrepiar quanto mais
perto a voz chegava. Então, eu ouvi aquilo:
—
Eu não ficaria parado aí se eu fosse você...
Aquela nova voz me tirou daquele transe. Rapidamente, virei
para trás. E, assim, eu o vi descendo as escadas.
Os coturnos negros nos pés. Os jeans azuis surrados
cobriam as pernas. Uma jaqueta preta de couro cobria o torso e os braços
completamente. O rosto pálido tinha um misto de superioridade e cansaço. As
olheiras escuras contribuíam para a segunda impressão. Os olhos e cabelos,
curtos e penteados para trás, eram castanhos escuros. Uma cicatriz vermelha, na
vertical, era bem visível no centro de sua sobrancelha esquerda.
Eu não sabia quem era aquele. Nem sabia se era humano. Só
sei que ele me disse:
—
Esse prédio não tem um andar no subsolo. Se eu fosse você, eu não ficaria aí
pra descobrir o que vai sair daí.
Um calafrio percorreu a minha espinha. Ele não parecia
estar mentindo. Nesse caso, se eu tivesse ficado ali, eu teria morrido
certamente.
Enquanto eu estava perdido em meus pensamentos, o homem
disse:
—
Venha logo! Não cuidei de seus ferimentos à toa. E vejo que você já pode andar.
Então...venha!
Eu não precisava ouvir mais nada. Eu assenti e corri
escadas a cima. Poucos segundos depois, a porta do elevador se abriu.
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