domingo, 25 de outubro de 2015

Conto 14 - Parte 1

Monstro


Eu nunca fui como os outros. E ela também. Foi por isso que nos demos tão bem.
Ainda me lembro daquela noite, há quase trinta anos atrás. O dia em que nos conhecemos.
Ela estava em seu quarto, deitada em sua cama, com o quarto fracamente iluminado pela luz que vinha de fora da janela de vidro.
A garota não conseguir dormir. Crianças da idade dela sempre têm tanta energia.
Sua mente viajava sem rumo. Sua imaginação poderia a entreter por horas a fio.
De repente, a garota ouviu a janela sendo aberta. Ela arregalou os olhos na minha direção enquanto eu adentrava o quarto.
Entretanto, meus olhos vermelhos não a intimidaram. De fato, eles despertaram a sua curiosidade.
Nada parecia capaz de causar medo aquela garota. Minhas garras afiadas. Minhas presas retorcidas. Meu corpo alto, esguio, coberto por pelos escuros. Minha cauda que se arrastava no chão, serpenteando constantemente. Nada parecia surtir efeito.
Se a garota não gritasse, o trabalho seria muito mais fácil para mim. Se ela não tentasse fugir do quarto clamando pelos pais, eu acabaria com aquilo em questão de segundos.
Mas, é como eu disse antes. Eu não era como os outros monstros. Eu não sentia nenhum prazer em fazer aquilo. Eu apenas tinha que me alimentar. Era só.
Lentamente, eu me aproximei da garota. Seus grandes olhos verdes me encaravam quase maravilhados, como se eu fosse um animal que ela estava vendo pela primeira vez num zoológico.
Enquanto eu aproximava minhas garras de seu rosto alvo e macio, percebi que não poderia fazer aquilo. Eu não sabia exatamente o porquê, mas eu simplesmente não podia.
Abruptamente, eu deixei o quarto, saindo pela janela. Mas não antes de olhar novamente para a garota que, como eu esperava, apenas olhava em minha direção, sem se mexer, ainda parecendo maravilhada.
Aquilo me incomodou durante o dia seguinte. Fiquei pensando naquela garotinha, tentando entender o que ela tinha de especial.
Infelizmente, não cheguei a nenhuma conclusão. Porém, aquilo não importava. Eu terminaria o trabalho naquela noite. Eu nunca mais pensaria nela.
Ou foi isso o que eu pensei. Afinal, o inesperado tende a acontecer.
Antes que eu pudesse entrar no quarto da garota, eu ouvi um grito. Curioso e um pouco confuso, eu subi rapidamente a parede até janela do quarto.
Lá, eu vi que eu não era o primeiro monstro a invadir o quarto.
A criatura era muito menos intimidadora do que eu. Isso eu garanto. Aquilo mais parecia uma pessoa magra em uma fantasia de lagarto do que um monstro. Entretanto, a garota se escondia debaixo das cobertas, tremendo de medo, pedindo chorosamente para ser deixada em paz.
Eu não sei o que deu em mim. Quando percebi, eu havia puxado a criatura pelo ombro e, com um grito, fiz aquela desculpa de monstro tremer e fugir de medo.
Eu olhei para de volta para a garota. Ela, agora, olhava para mim, mais uma vez maravilhada. E eu, mais uma vez, deixei o quarto dela. Desta vez, porém, eu estava ainda mais confuso.
Eu havia acabado de salvar uma garota. Monstros não faziam. Mesmo eu sendo diferente dos outros, aquilo era bizarro.
Porém, por mais estranho que eu me sentisse, por mais confusa que minha mente estivesse, eu não sentia que havia feito algo errado.
Mais uma noite havia chego. Mais uma vez eu havia voltado até o quarto daquela garota. Desta vez, porém, ela já me aguardava.
Quando eu entrei no quarto, eu a vi deitada na cama, com as costas na parede atrás dela. No momento em que ela me viu, a garota sorriu e se levantou da cama.
Eu permaneci parado, confuso, observando a criança se aproximar de mim.
A garota, com aqueles grandes olhos verdes, olhava para mim enquanto sua mão vinha lentamente em minha direção. Eu não me mexi. Ela afagou gentilmente meu pelo, como se eu fosse seu animal de estimação. Então, rapidamente, ela me abraçou.
Foi uma sensação estranha. Parte de mim queria afastar a garota. A outra estava confortável como nunca.
Obrigada. Ela disse baixo.
Claro que ela estava se referindo à noite anterior, quando eu a salvei.
Eu olhei de volta para a garota. Ela sorriu calorosamente. E eu fiz o mesmo sem pensar.
Não tem medo de mim? Indaguei. Afinal, minha curiosidade era desconcertante.
Não. Ela respondeu simplesmente.
Mas você sentiu medo do monstro de ontem, não é?
Ela assentiu rapidamente.
Mas por que você teve medo dele e de mim não?
Porque você é diferente. Você não ia me fazer mal Ela sorriu.
Ah... Fiquei surpreso. E como você sabe disso?
Não sei. Só sei.
Claro que uma criança não me daria uma resposta muito esclarecedora. Entretanto, eu admito que fiquei satisfeito com a sinceridade. Afinal, agora eu não era o único que me considerava diferente.
O futuro seria complicado para mim agora. Eu não tinha muita certeza do que faria. Por isso, precisava de tempo para pensar.
Tenho que ir. Disse à garota.
Tudo bem. Ela respondeu. Mas você volta amanhã, não é?
Hm... Mas uma vez, eu estava surpreso. Ah... Claro...
Então me promete! Ela estendeu o mindinho na minha direção.
Eu olhei confuso para ela. Ela me pareceu um pouco irritada.
O que é isso...? Perguntei.
Faz a mesma coisa! Ela mandou.
Por quê...?
Por que sim! É assim que se faz uma promessa!
Ah... Eu hesitei por um instante, mas, no fim, estendi o meu mindinho na direção dela. Assim?
Rapidamente, ela entrelaçou o dedo dela com a minha garra, sem medo de se machucar.
Eu olhei para a garota. Ela sorriu largamente.
Ok! Ela disse. Tudo certo!
Certo... Então posso ir agora?
Sim!
Eu me virei para trás, em direção à janela.
Ah é! Ela exclamou antes que eu pudesse ir embora. Eu virei em sua direção. Qual o seu nome?
Hm... Crocell. Resolvi responder sinceramente.
Uau. Que nome diferente... Gostei! Ela sorriu.
E o seu nome? Perguntei.
Amy! Você não vai se esquecer, ou vai?
Tentarei não esquecer... Sorri. E agora... Eu tenho que ir... E você tem que dormir, não é?
É... Ela pareceu desanimada por um segundo. Porém, rapidamente ela sorriu de novo. Mas tudo bem, por que amanhã eu te vejo de novo!
Claro...
Tchau, Crocell! Ela se despediu com um aceno.
Adeus, Amy. Acenei de volta.

Enquanto ela voltava para cama e se cobria, eu saí pela janela, mais confuso e feliz do que nunca. 

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