4.
—
Vamos até o meu apartamento. —
O senhor Estmund disse. —
Poderemos falar o quanto quisermos lá sem sermos... — Ele fez uma breve pausa e olhou para o
rapaz. — Sem sermos
perturbados.
Apesar de receoso, Joshua percebeu que não havia outra
escolha.
A uma distância que ele julgava segura, o jovem seguiu o
senhor Estmund pelas escadas até o andar térreo. Surpreendentemente, o homem a
frente de Joshua andava com passos rápidos e com uma postura elegante. O rapaz
nunca havia percebido aquilo sobre o vizinho até aquele momento.
Em silêncio, os dois seguiram até o elevador.
Joshua estava aliviado por não ter que subir até o quinto
andar pelas escadas. Suas pernas mal aguentavam mantê-lo em pé.
Entretanto, ao perceber que ele estaria numa caixa de
metal, mesmo que por alguns instantes, confinado com o senhor Estmund, o
estômago de Joshua começou a revirar.
Antes que o jovem pudesse protestar, a porta se fechou.
Com as costas encostadas numa das paredes do elevador, Joshua
cruzou os braços e tentou não pensar na situação. Em vão.
O ar parecia mais frio e denso. A luz do elevador
oscilava, piscando constantemente.
O corpo de Joshua estava tenso. Ele pensava que aquilo
não o perturbaria. Afinal, o elevador deveria chegar ao quinto andar em alguns
segundos. Entretanto, não era isso o que acontecia.
A mera respiração do senhor Estmund ao lado de Joshua o
perturbava mais do que ele poderia esperar. Parecia que aquilo era o que estava
fazendo o ar ficar menos confortável.
Ainda mais tenso, o rapaz percebia que o seu coração
batia excessivamente rápido. Paranóico ou não, ele poderia jurar que podia ouvir
os batimentos sob seu peito.
Após o que pareceram minutos, a porta do elevador se
abriu. O senhor Estmund saiu rapidamente. Joshua respirou fundo, aliviado,
antes de seguir o vizinho.
Chovia forte naquela noite. Trovões podiam ser ouvidos à
distância. O vento soprava forte pelo corredor. O senhor Estmund parecia não se
importar. Joshua, por outro lado, apesar de usar um casaco, tremia. Ele tinha
certeza que estava frio. Seu vizinho simplesmente parecia não se importar.
Os dois atravessaram rapidamente o corredor, passando na
frente do apartamento de Joshua.
O jovem resistiu ao ímpeto de entrar no conforto de seu
lar. Por mais deprimente que fosse, aquele pequeno apartamento era seu único
lugar de paz. Depois de uma experiência traumática como aquela, jogar-se em sua
cama, cerrar os olhos e cair rapidamente num sono profundo era tudo o que ele
queria.
Entretanto, Joshua tinha que saber o que havia sido a
experiência bizarra pela qual ele havia acabado de passar. Aquilo havia sido
real. Daquilo o rapaz tinha certeza.
Ao chegarem ao fim do corredor, na frente do apartamento
do senhor Estmund, o velho olhou o rapaz nos olhos.
Como de costume, um mal estar súbito atingiu Joshua.
Porém, antes que o rapaz pudesse perceber, ele já estava de volta ao normal.
Surpreso, o jovem olhou para seu vizinho. Estmund abria a
porta a sua frente calmamente.
—
Venha. — Ele ordenou
Joshua enquanto entrava em seu apartamento.
O jovem hesitou. Ele engoliu em seco, mas, por fim,
percebeu que aquela era a melhor opção.
Não muito animado, Joshua entrou no apartamento.
—
Sinta-se em casa. —
Disse o senhor Estmund em um tom quase humano.
O rapaz olhou para todos os cantos da sala cinzenta.
A única janela era coberta por uma persiana bege. A luz
branca do teto iluminava fracamente o ambiente. A televisão, bem como o móvel
em que ela estava em cima, estavam cobertos de pó. Um cesto de palha ao lado do
sofá verde escuro continha uma quantidade absurda jornais. Uma pequena mesa de
vidro, do tamanho de um criado mudo, estava do outro lado do sofá. Um único e
solitário quadro estava numa parede. Sua pintura com cores escuras parecia
abstrata, ao menos, para Joshua.
Do outro lado da sala estava um corredor imerso na
escuridão. Joshua esperava não ter que ir tão fundo no lar de seu vizinho.
—
Aceita algo para beber? —
O senhor Estmund perguntou.
—
Ah... — Joshua queria
dizer não, porém, depois de tanto
correr, ele estava morrendo de sede. Entretanto, o jovem só havia percebido
isso agora que estava um pouco menos tenso. —
Um copo de água seria bom.
—
Ótimo. — Ele apontou
para o sofá. —
Sente-se.
As pernas de Joshua não o deixaram contrariar a ordem de
Estmund. Rapidamente, o jovem assentiu e, praticamente desabando, sentou-se no
lado esquerdo do sofá.
Enquanto o senhor Estmund foi buscar o copo de água,
Joshua se perdeu em pensamentos.
Entretanto, sua mente ficou em branco rapidamente.
Cansado daquele jeito, era esperado que ele desmaiasse, caindo num sono
profundo.
E, assim, o jovem teria seu descanso merecido.
Entretanto, cicatrizes já haviam sido marcadas em Joshua.
A risada do maníaco ecoou dentro da cabeça do jovem,
acordando-o abruptamente, trazendo-o de volta à realidade.
Com os olhos arregalados e a respiração ofegante, ele
olhou para frente.
Sentado em uma cadeira de madeira no meio da sala, o
senhor Estmund abaixou um jornal e olhou de volta para Joshua.
—
Um pesadelo, não é? —
Ele perguntou para o rapaz já sabendo a resposta.
Joshua levou as mãos trêmulas ao rosto. Suor escorria por
sua face. Suas pernas tremiam.
—
Você está seguro. —
Disse Estmund confiante. —
Pelo menos, por enquanto.
—
Como você pode estar certo disso? —
Perguntou Joshua. —
Aliás... — Ele abaixou
as mãos e olhou o senhor nos olhos. Dessa vez, sem sentir medo. — Como você sabe do que
aconteceu comigo? O que você é por acaso?
Estmund sorriu. Rapidamente, ele se levantou. Apoiada do
lado da cadeira estava a sua bengala. Rapidamente, o senhor a pegou.
Entretanto, ele não se apoiou nela.
Joshua mal podia acreditar no que estava prestes a ver.
A cor da bengala mudou rapidamente, bem como sua
extensão. Em um instante, o objeto dobrou de comprimento e se tornou negro como
piche. Na extremidade superior, uma lâmina se formou. Prateada, no formato de
uma lua crescente.
Os olhos de Estmund agora brilhavam com uma cor
escarlate. Com um sorriso sinistro no rosto e apoiado em sua foice, ele disse:
—
Eu sou a Morte. Muito prazer.
5.
Joshua estava quieto, encarando o vizinho, pensativo.
—
Ora... — Estmund riu
baixo. — Como era de
se imaginar, está surpreso...
—
Na verdade, não. — O
rapaz retrucou. —
Depois do que eu vi hoje... —
Ele suspirou. — Acho
que nada mais vai me surpreender.
Estmund abriu um largo, e ligeiramente assustador,
sorriso, deixando escapar uma risada baixa e grave.
—
O que é tão engraçado? —
Joshua indagou levemente irritado.
—
Até alguns instantes atrás... —
O ceifador começou a falar calmamente. —
Você me temia. Isso apenas por causa da minha vontade...
—
Isso é ridículo...
Quando ele terminou de enunciar aquelas palavras, o jovem
sentiu o ar ficar mais frio e denso a sua volta. Ao olhar para Estmund, voltou
a sentir medo daqueles olhos sem vida. Em questão de instantes, o rapaz tremia,
encolhendo-se lentamente no sofá, sentindo o corpo tremer, a visão embaçando e
quase não conseguindo respirar.
A mente do rapaz não parecia mais capaz de entender nada.
Não havia como ele ter noção do tempo passando a sua volta, muito menos se ele
estava em perigo ou não.
Não mais do que alguns segundos se passaram. Joshua
parecia fugir de um transe graças à risada do ceifador.
O rapaz levou a mão à testa como se reclamasse de uma dor
de cabeça.
Suas mãos suavam. Suas pernas tremiam. Sua respiração
estava pesada.
Estmund estava sentado na cadeira de madeira, olhando
entediado para Joshua, sem mover os lábios. Entretanto, o som grave ainda
parecia ecoar pelo pequeno e sombrio apartamento.
— Viu?
— O ceifador sorriu. — Você ainda pode sentir
medo. Muito medo.
Joshua se ajeitou no sofá. Claramente, apenas pela
expressão em seu rosto, o jovem estava desconfortável. Se fosse possível, ele
não diria mais uma palavra e se afastaria do apartamento e de seu dono naquele
mesmo instante.
—
Enfim... — Estmund
limpou a garganta. —
Você ainda tem muito a aprender, garoto. E é por isso que eu estou aqui. Para
te ensinar.
—
Por quê? — Indagou
Joshua. — Por que a
Morte está me contando isso?
—
Para isso... Vou ter que te contar outras coisas antes...
—
Como o quê?
—
Bem... Eu sou apenas um ceifador. Existem vários outros por aí.
—
Ah... — O rapaz parecia
pensativo, arrastando a voz. —
Mas... Por que isso? Por que existem vários de vocês?
—
Sabe quantos pessoas morrem no mundo inteiro a cada instante? Um só ser
sobrenatural com uma foice não bastaria para guiar todos para o além, não acha?
—
Mas...
—
A Morte não é onipresente. —
Ele disse rapidamente, antecipando a pergunta do jovem. — Entendeu?
—
Certo... — A mente de
Joshua estava inquieta. —
Então... Quantos ceifadores existem mundo afora?
—
Olha... — Ele coçou a
barba grisalha sobre o queixo. —
Não tenho certeza. Aliás... Não sei se alguém ainda tem certeza... — Estmund soou melancólico.
— Houve um tempo que
éramos imprescindíveis. Cada um de nós trabalhava duro, sabe? Haviam milhões de
pessoas no mundo e parecia que quase todas morreriam antes de completarem
quarenta anos de vida. —
O ceifador riu baixo. —
Agora... Vocês são bilhões. Por mais que muitos morram, muitos mais vêm. Além
disso, vocês estão vivendo cada vez mais. Entretanto, a nossa população também
aumenta, não como a de vocês, mas aumenta. —
O senhor fez uma breve pausa. —
O resultado disso é que muitos de nós, ceifadores, estamos trabalhando cada vez
menos... Alguns estão até parando de trabalhar.
—
Certo... — Joshua
olhou rapidamente ao seu redor, observando cada canto da sala empoeirada. — Então... Você anda
ocupado com seu trabalho?
—
Pra ser sincero... Não muito. Mas... Sabe como é... A vida não está muito
animadora ultimamente. Ando sem vontade de fazer praticamente qualquer coisa.
Até mesmo interagir com vocês, humanos, estava... Bem, chato. Depois de
milênios... Tudo acaba ficando um pouco chato.
—
Imagino... — O jovem
coçou a nuca. —
Então... Interação com humanos?
—
Sim. O que tem?
—
Que tipo de interação você está falando?
—
Ás vezes, só observamos as suas vidas. Fazemos apostas sobre o que vocês farão,
o que não farão, quando morrerão... Nada de mais.
—
Claro...
—
Aliás, anjos e demônios também compartilham de tais prazeres.
—
Então... É tudo um grande reality show pra vocês?
—
Quando você diz dessa maneira parece insultante, mas... — Ele bufou. —
Sim.
—
Mas... Vocês intervêm na vida dos humanos?
—
Em alguns casos. Anjos e demônios mais raramente. Pelo menos, quando nesse
mundo.
—
Como assim?
—
Eu explicarei em breve.
—
Mas...
—
Normalmente... —
Estmund não permitiu que Joshua pudesse fazer sua pergunta. — Ceifadores intervêm na
vida de mortais cercados pela morte, tanto pessoas que sofreram perdas como
aquelas que as causam. Podemos, por exemplo, proporcionar um adeus mais
conclusivo entre alguém que está vivo e alguém que morreu há pouco tempo. Isso
acaba sendo benéfico para ambos os lados, resolvendo o que não fora resolvido,
trazendo paz a ambas as partes. É uma pela ação de nossa parte... Porém... — Ele exibiu um sorriso
maligno. — Também
podemos fazer com que um assassino se encontre com sua vitima. Isso não é muito
benéfico. Um ser vivo é assombrado, um fantasma se vinga. Mas, sinceramente, é
bem divertido de assistir.
—
Então... Vocês, ceifadores, são neutros? Nem bons, nem maus?
—
Exato! — Ele sorriu. — Mas não são muitos que
entendem isso...
—
E o que você pretende fazer comigo? Além de jogar conversa fora, claro...
—
Ora... — Estmund
abriu um largo sorriso. —
Eu estou aqui para transmitir conhecimento, como já te disse. Sobre os
ceifadores, o mundo que você visitou, o seu destino e o destino dela.
—
Ah... Dela?
—
Sim. O futuro de sua amada também está em jogo, meu caro Joshua. — Sua expressão ficou
séria. — Por isso...
Deixe-me terminar de falar o que tenho para falar, certo?
6.
O rapaz estava, agora, claramente alarmado. Ele adoraria
falar que Adriana ficou para trás, mas a verdade não era essa. O estado
patético em que o jovem se encontrava prova disso.
Joshua sentiu a aliança ainda no bolso e engoliu em seco.
Ele não conseguiria se esquecer dela. Talvez, nunca chegasse a esquecer.
Tendo tudo isso em mente, o rapaz olhou para Estmund. Sem
dizer nada, ele apenas assentiu para o ceifador, sinalizando que ele ouviria o
que o senhor tinha a dizer.
—
Bom... — Estmund
limpou a garganta. —
O que eu vou dizer agora, bem... Pode ser difícil para você acreditar. Porém,
como eu não tenho motivos para mentir... Peço que você tenha a mente aberta,
certo?
Joshua, novamente, assentiu, sem dizer uma palavra.
—
Excelente... — O
ceifador coçou a barba vagarosamente e, então, olhou diretamente para os olhos
do jovem. — Diga-me
como você sabe que está vivo neste exato momento.
—
Ah... — O rapaz
tentou dizer algo. Entretanto, sua mente parecia não conseguir vir a uma resposta.
Da sua boca, apenas sons inteligíveis saiam... —
Ah... Eu... Hm...
—
A resposta é simples. —
Ele sorriu. — Você
não tem como saber. Simples assim.
Joshua se manteve em silêncio, pensando.
Estmund se manteve quieto, apenas aguardando a pergunta.
—
Então... Se eu estivesse morto, como eu poderia estar, bem, vivendo essa vida? — Indagou o rapaz. — Como eu poderia estar
aqui conversando com você? Isso é o pós vida? O quê...?
—
Muitas perguntas, muitas perguntas... —
O ceifador murmurou. —
Como previsto... Ainda bem... —
Ele sorriu. — Se você
não mostrasse interesse, não teria a mesma graça.
—
Certo... Então... Você poderia me responder algo?
—
Claro que posso. —
Ele olhou, um pouco distraído, para a lâmina da foice que parecia brilhar no
ambiente cinzento. —
Quanto ao pós vida... É algo um pouco complexo. Afinal, vocês, humanos, têm
três alternativas, apesar de nem todas serem visíveis a princípio.
—
Ah... Claro... —
Joshua bufou. — Por
favor, explique.
—
Nós, ceifadores, levamos as almas até o Plano Espiritual. Lá, vocês recebem a
opção de seguirem um anjo ou um demônio. Entretanto, é possível recusar a ajuda
de ambos. Nesse caso, uma terceira opção é apresentada para o falecido.
—
E qual é a pegadinha? Aliás... Quais são as pegadinhas? Tenho certeza que nada
é muito claro nesse momento...
—
Pelo contrário. —
Estmund soou melancólico. —
Esse é o momento de maior clareza da vida de uma pessoa. É o momento em que
tudo que ela precisa saber é revelado.
—
Como o quê?
—
Como o fato de muitas delas já estarem mortas por anos e não saberem...
Joshua permaneceu em silêncio. Ele precisaria de detalhes
para acreditar no que o ceifador estava dizendo. Felizmente, Estmund percebeu
isso rapidamente.
—
Pense assim, garoto... —
Ele começou a dizer. —
A sua alma é um corpo completo e funcional. Assim sendo, ela tem uma mente que,
na verdade, é exatamente igual a do seu corpo físico. É por isso mesmo que você
não a percebe. Ela funcionaria mais como uma reserva que você nunca precisaria
usar até seu corpo físico perecer e você for para o plano espiritual. Entendeu?
—
Sim...
—
Ótimo. — O ceifador
respirou fundo. —
Então... Já como sua alma é capaz de pensar, ela também é capaz se sonhar... E,
assim, ela é capaz de te mostrar um mundo falso que pode parecer extremamente
real...
—
Ah... — O jovem
engoliu em seco. Ele parecia ter entendido o que o ceifador queria dizer. Ele
também parecia preocupado com a conclusão. —
Então... A nossa mente, a mente dos humanos, seria capaz de nos enganar para
não sabermos que estamos mortos...?
—
Precisamente.
—
Mas... Por quê?
—
Para evitar finais decepcionantes.
—
Como assim?
—
Imagine que sua vida é um filme e você é o protagonista. Você tem seus
objetivos. Você supera obstáculos para cumprir seus objetivos. A vida parece
que tenta te derrubar. Você cai, sofre, mas se levanta no final e segue em
frente. No fim, você é feliz. Ou não. —
Ele riu baixo. — Mas
o que realmente importa é que você fez as suas escolhas e viveu como quis,
entende?
—
Certo...
—
Então o quão decepcionante seria esse filme se, abruptamente, o protagonista
morresse num acidente qualquer, sem conseguir realizar seus objetivos?
—
Ah... Entendi. —
Joshua ficou em silêncio por um instante. —
Então... Somente as pessoas que tiveram um final infeliz e inesperado que
passam a viver essas vidas falsas?
—
Sim... Para nós, ceifadores, é quase como se elas estivessem em um coma. As
almas não se movem nem reagem a estímulos. Mas elas ainda, bem... Vivem. E é
exatamente em suas mentes que suas vidas se passam agora. Mas isso acaba
podendo gerar um grande problema.
—
Que seria?
—
O momento da revelação...
—
Ah... — O jovem
pensou por um instante e suspirou. —
Imagino que nem todos saibam lidar com isso...
—
Exatamente. Saber que os momentos mais felizes de sua vida foram mentiras...
Pode ter efeitos terríveis... —
A expressão no rosto de Estmund estava ainda mais séria agora. — Muitos, tomados pela
raiva, escolhem seguir o demônio que promete vingança, abandonando qualquer
tipo de paz ou salvação.
—
O que exatamente acontece com as almas que seguem os demônios?
—
Existem muitas possibilidades. Mas sei que você já viu de perto uma dessas
possibilidades.
Joshua não precisava parar para pensar naquilo. A risada
de seu perseguidor soou em sua cabeça, ecoando e fazendo seu corpo tremer.
—
E isso me leva ao nosso próximo tópico... —
Estmund continuou a falar. —
O outro mundo. O lugar onde você estava...
—
O que você pode me dizer sobre ele?
—
Eu não conheço muito sobre o lugar, então... Infelizmente, não posso te ajudar
tanto quanto eu gostaria.
—
Pensei que você sabia de tudo nesse mundo...
—
Nesse em que estamos? É bem provável. Num mundo que eu nunca coloquei os meus
pés e que é tão velho quanto esse em que estamos? Não... Não conheço tanto
assim dele...
—
Você nunca foi lá? —
Joshua soou ainda mais intrigado. —
Por quê?
—
Porque aquela é uma terra de amaldiçoados, garoto. Amaldiçoados pela tristeza,
ódio e sofrimento. E com isso eu me refiro aos vivos e aos mortos.
—
Mas algo o proíbe de entrar lá?
—
Não. Mas nada me motiva a ir lá. Anjos abandonaram os vivos que entram lá. As
assombrações fazem todo o trabalho sujo de matar e roubar almas, então os
demônios não tem motivo de ir até lá pessoalmente. É uma terra de ninguém,
entendeu?
—
Ah... Então eu fui parar naquele lugar...?
—
Por causa de como você está depois de sua amada ter te deixado. — Estmund disse
rispidamente. —
Somente por isso. E, assim, antes que você perceba, você estará perdido naquele
pesadelo de novo.
Joshua se sentiu como se tivesse levado um soco no
estômago. Ele inclinou o corpo para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos e
levando as mãos ao rosto. O rapaz respirou fundo, soltando o ar, em seguida,
lentamente pela boca.
—
Garoto... — O
ceifador parecia preocupado. —
Você...
—
Se eu parar de me sentir assim...! —
Joshua começou a dizer exasperado, porém, hesitou por um instante para respirar
profundamente. — Se
eu parar de me sentir assim... —
Ele repetiu, agora mais calmo. —
Eu nunca mais volto para aquele lugar. É isso?
—
Sim... Mas você não é capaz.
—
E como você é capaz de saber isso?
—
Eu já estou observando vocês, humanos, há um bom tempo... Sei que vocês não
conseguem lutar contra seus sentimentos... Principalmente quando o sentimento
em questão é amor ou ódio.
—
O que você quer que eu faça então!? —
Ele olhou Estmund nos olhos. —
Tire a minha própria vida!?
—
É uma opção. Porém, é uma saída fácil demais, não acha?
—
O que você sugere que eu faça então!?
—
Volte a ser feliz. Ao lado dela.
—
Claro! — Ele riu com
escárnio. — Fácil
fazer isso...
—
Você não sabe os motivos que ela tinha para fazer o que fez.
—
E você sabe?
—
Sim. Tem a ver com a terceira opção que eu falei antes.
Joshua se manteve quieto, pensando no que o ceifador
havia dito antes. Seguir o anjo ou o demônio eram apenas duas alternativas. A
terceira opção viria caso as outras fossem negadas.
—
Qual seria a terceira alternativa? —
O rapaz perguntou.
—
Fugir do anjo e do demônio até você achar um ser que não é nem bom, nem mau...
Que não seja preto, nem branco... Que não seja da luz, nem das trevas.
—
Que seria o que exatamente?
—
Bem... Há vários nomes. O meu favorito é Djinn.
—
Djinn? —
O jovem indagou. —
Como gênios? Que realizam desejos?
—
Sim. Porém, eles apenas realizam um desejo.
—
Que seria...?
—
Viver mais uma vez. Conseguir atingir um novo objetivo. Não ser enganado pela
própria alma dessa vez.
—
E o que o Djinn ganha com isso?
—
A alma da pessoa que ele está ajudando.
—
Então... O que aconteceria com essa pessoa no pós vida?
—
Nada.
—
Como assim nada?
—
Absolutamente nada. É o fim da existência do indivíduo. A alma dela foi
devorada pelo Djinn. Ela simplesmente deixa de existir depois que seu corpo
físico perece...
—
Então... — O rapaz
engoliu em seco. —
Adriana vendeu a alma dela para o Djinn?
—
Sim...
—
E... O desejo dela? O que foi?
—
Apaixonar-se. Casar-se. Ser feliz como ela não pôde da primeira vez...
—
Ah...
Joshua voltou seu olhar para o chão, melancólico.
—
Eu não fui bom o suficiente para realizar o último desejo dela... — O jovem falou com a voz
chorosa. — É isso?
—
Na verdade, é exatamente o contrário. —
O ceifador disse com simplicidade.
Joshua levantou a cabeça e olhou para Estmund.
Os olhos do rapaz estavam avermelhados. Uma lágrima
escorria de seu rosto.
Estmund tinha a expressão serena, despreocupado. Ele
estava dizendo a verdade com certeza.
—
Como assim? — Indagou
Joshua.
—
O desejo concedido pelo Djinn tem um detalhe importante que eu não havia lhe
contado. — O ceifador
começou a explicar. —
Depois que o desejo é realizado, a pessoa morre.
Joshua manteve-se em silêncio.
—
Ao meu ver, não é um acordo ruim. —
Estmund continuou falando. —
Morrer com um sorriso no rosto não é algo que todos conseguem. Entretanto...
Tem aqueles que temem a morte acima de tudo. —
Ele olhou diretamente nos olhos do jovem. —
Sua amada sabia que, caso continuasse com você, ela seria feliz, mas, com o
tempo, ela morreria por causa desse amor. Assim, ela decidiu que seria melhor
viver na tristeza do que morrer feliz. Péssima escolha, na minha opinião.
Joshua permaneceu em silêncio, tentando assimilar tudo o
que havia ouvido.
O ceifador foi paciente. Ele esperou o tempo necessário
para que o rapaz voltasse a fazer contato visual com ele.
—
Então... — Estmund
falou calmamente. — O
que você fará?
—
Eu... — Joshua
respirou fundo. — Eu
não quero desrespeitar as decisões dela... Mas... Eu não posso viver feliz...
Não sabendo que ela está infeliz...
—
E você vai deixar que ela morra? Mesmo contra a vontade dela?
—
Eu... Vou fazer com que ela enxergue a situação por completo... Vou fazer com
que ela veja que não faz sentido viver na tristeza... Vou fazer com que ela
seja feliz até o fim da vida dela.
—
Belas palavras. — O
ceifador sorriu.
—
Ah... Obrigado. — Joshua
sorriu de volta, genuinamente feliz.
—
Entretanto... Ainda há um problema.
—
O que seria?
—
Encontrar Adriana.
—
Não creio que isso seja um problema. Eu só preciso tomar um banho, me arrumar e
passar na casa dela. Talvez eu compre flores no caminho...
—
Não é sobre isso que eu estou falando, Romeu. —
Ele zombou. — Há algo
sério que pode acontecer com ela, se é que já não aconteceu...
—
Do que você está falando?
—
Do jeito que ela está vivendo agora. Imersa na tristeza, sofrendo com a própria
escolha... Não vai demorar muito para que ela termine...
Estmund não precisou terminar aquela frase.
Joshua, o mais rápido que pôde, levantou-se e saiu porta
afora, rumo à casa de sua amada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário