domingo, 5 de julho de 2015

Conto 8

Dr. Milgram


“Você me ama?”.
Era essa a pergunta que Ana, minha ex-namorada, perguntava-me constantemente enquanto namorávamos. Com um sorriso no rosto, eu respondia “sim, eu te amo” sem hesitar. Ela, então, sorria, parecendo ainda mais bela.
Lindo, não? Seria. Por quê? Por que não era verdade.
Ana era linda, carismática e sempre tentava animar o meu dia. Mas não era ela quem eu queria. Não que eu tivesse alguém em mente. E era exatamente esse o problema. Nunca havia encontrado alguém que eu tivesse realmente me apaixonado nessa vida. Por isso, eu nunca havia namorado antes.
Cansada de sair com os típicos bonitões estúpidos que só se importavam com o corpo dela, Ana resolveu sair com alguém diferente. E foi aí que tudo começou
Foi assim, de repente.
Nós éramos da mesma faculdade, do mesmo curso, porém, de salas diferentes. Um dia qualquer, nós esbarramos no fim do dia. Ela tinha que estudar para uma prova. Eu também. Fomos à biblioteca e tudo começou.
Eu não me lembro de nada demais daquele dia. Mas, aparentemente, ela adorou passar aquele tempo comigo.
Pensando bem, ela deve ter gostado da novidade. Eu fui um cara que não deu em cima dela por causa da aparência dela. Nos dias seguintes, eu perguntava a ela como o dia dela havia sido, se estava tudo bem ou perguntava sobre o que ela se interessava. Nada demais para mim. Um mundo completamente novo para ela.
Não demorou a começarmos a namorar.
Meus amigos não acreditavam. Eles tinham inveja de mim agora. Afinal, enquanto muitos deles não tinham sucesso com alguma garota, eu sabia que eu tinha Ana me esperando no fim do dia.
E foi exatamente por isso que nós namoramos. Ela me adorava. Eu achava a situação cômoda. Apenas isso.
Porém, na primeira vez que ela disse “eu te amo, Vítor”, eu respondi “eu também te amo, Ana”. Foi algo muito natural para mim. Aquilo fez com que ela ficasse muito feliz. E eu via que, futuramente, aquilo seria um problema.
Se eu já havia pensado em terminar com ela? Claro que sim. Mas, é como eu disse antes: comodismo. Caso desmanchássemos o namoro, eu voltaria a ficar só. E não sabia por quanto tempo. Por isso, descartei tal possibilidade. Não queria pensar muito no futuro.
Nos meses seguintes, eu cheguei a contar a situação para alguns amigos, como forma de desabafo apenas. Por algum motivo, eu me sentia mais leve depois de falar com eles. Entretanto, eu não acatava a nenhum conselho deles. Afinal, eles tinham bom senso. Todos me falavam que a melhor escolha seria terminar o namoro. Por isso mesmo que eu os ignorei.
Manti as amizades, bem como o namoro. Tudo seguia como o planejado.
Porém, eu sentia que Ana não estava tão feliz comigo. Não era pra menos. Nós mal saímos para fazer alguma coisa diferente. Bares e restaurantes fast food eram os locais onde íamos comer juntos. Isso quando eu me dava o trabalho de sair de casa.
Porém, o belíssimo sorriso no rosto de Ana nunca sumia. Eu não a merecia. Eu sabia disso. Eu desconfiava que ela também soubesse.
Porém, um dia, ela me veio com uma ideia nova.
Um estudo sobre casais. Disse Ana, um dia, enquanto me entregava um panfleto. Um centro de pesquisas está procurando casais apaixonados para participarem de um estudo. Topa?
Eu hesitei. Rapidamente, li o papel que ela havia me entregue. Não sabia onde era o lugar exatamente. Muito menos onde Ana havia conseguido aquele panfleto. Aquilo foi um erro.
Porém, ao ler que os casais receberiam, ao todo, quinhentos reais pela participação, eu não pensei antes de responder:
Topo.
O resto daquele dia passou rápido até, mesmo sendo monótono.
Ao acordar seis da manhã no dia seguinte, eu nem reclamei. Era domingo, eu não havia dormido tanto quanto eu gostaria, mas eu teria duzentos e cinqüenta reais em mãos até a hora do almoço.
Eu já havia visto no dia anterior como eu deveria chegar até o endereço. Por isso, dirigi o mais rápido possível até o local.
Ao chegar lá, juntamente com Ana, tive um mau pressentimento. O prédio cinzento, pequeno e velho, não me parecia um centro de pesquisas. A região, afastada do resto da cidade, próxima a uma região de mata fechada, era pouco convidativa.
Mesmo assim, fomos até a porta do lugar. Por um interfone, uma voz calma perguntou por que estávamos lá. Ao respondermos que era por causa do estudo de casais, a porta se abriu no mesmo instante.
Ao entrarmos no prédio, fomos recebidos por uma mulher com um largo, e quase artificial, sorriso. Vestida com uma camisa azul e calças pretas, ela pediu que a seguíssemos.
Assim, eu e Ana andamos por um corredor, seguindo aquela mulher. Com as fracas luzes amarelas piscando pelo caminho, eu sentia como se a escuridão fosse me engolir.
A mulher a minha frente parecia que se distanciava a cada instante. Ana se aproximou de mim, apertando meu braço delicadamente, murmurando que estava com medo. Eu teria dito para ela se acalmar, mas eu sabia que eu não conseguiria fazer o mesmo.
De repente, a mulher abriu uma porta à esquerda e entrou, pedindo para que nós a acompanhássemos. Não questionamos.
Ao entrar lá, vimos uma sala incrivelmente branca e limpa, como o consultório de um dentista. Nela, entretanto, não havia nada, com a exceção de um homem.
Aquele era, como eu viria a descobrir em breve, o Dr. Milgram. Trajando um jaleco branco, ele tinha quase dois metros de altura, costas largas, barbas e cabelos brancos, além de óculos que pareciam um pouco pequenos demais para ele.
Com sua voz grave, o doutor perguntou:
Prontos para o experimento?
O jeito que ele falou aquilo era um pouco perturbador. O doutor parecia se referir a mim como uma cobaia.
Ao ver que Ana estava quieta do meu lado, resolvi responder por nós dois:
Ah... Sim. Sim, estamos...
Ótimo! Dr. Milgram disse, praticamente rugindo. Agora... Ele apontou para as duas portas no fim da sala, uma ao lado da outra. Vão. O homem para a da direita. A mulher para a da esquerda.
Sem contestarmos, seguimos nas direções ordenadas até que o doutor gritou:
Parem!
Nós obedecemos, apreensivos.
Virem-se e assinem isso. Milgram disse em seguida.
Quando olhamos de volta para ele, o doutor tinha uma caneta e uma folha de papel em cada mão. Calmamente, pegamos os dois objetos. Quando eu ia começar a ler o que estava no que deveria ser um contrato, algo para certificar que estávamos cientes do que aconteceria e a responsabilidade seria nossa, eu senti uma respiração pesada na minha frente.
Era Milgram. Ele apenas me encarava, irritado, com os braços cruzados, bufando no meu rosto.
Resolvi não ler e assinar logo o papel. Ana fez o mesmo. O doutor sorriu e disse:
Perfeito... Agora... Entrem nas respectivas salas.
Fizemos conforme ordenado. A recepcionista, que era, aparentemente, também assistente do doutor, seguiu Ana. Eu, por outro lado, tive o prazer de ser seguido por Milgram.
Adentrei a sala. Não havia luz até o doutor as ascender atrás de mim. Ao ver na sala, senti vontade de dar meia volta e deixar o lugar. Entretanto, algo me dizia que o Dr. Milgram seria contra.
O teto, o piso e o chão. Tudo era tingido de um tom de cinza decrépito. Inclusive a maldita cadeira no centro da sala.
Feita de aço com um estofamento de couro preto gasto, aquilo mais parecia um instrumento de tortura. E, como eu imaginava, Milgram me mandou sentar nela.
Eu senti o frio do metal dos braços da cadeira nos meus próprios braços. Bruscamente, o doutor apertou o cinto da cadeira na minha cintura.
Em seguida, foram os meus braços. Três pequenas faixas prendiam firmemente eles à cadeira.
Por último, veio aquilo. O que me parecia ser um capacete foi preso na minha cabeça, comprimindo-a. Também senti algo como algumas ventosas prendendo-se em minha nuca e testa. Além disso, havia algum tipo de fone dentro daquilo. Eu só fui descobrir aquilo quando eu ouvi:
Prepare-se.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, eu olhei para o Dr. Milgram. Ele apontava para uma pequena tela quase no teto da sala. Eu não havia notado aquilo até o momento.
Com um controle remoto, o doutor ligou a pequena televisão. Uma contagem regressiva começou.
Três...
Eu ouvi um clique metálico perto de mim. Demorei um pouco para perceber o que havia acontecido.
Dois...
No braço esquerdo da cadeira, a milímetros de meu punho fechado, estava um botão vermelho. Eu tinha certeza que ele não estava ali antes.
Um...
Um ímpeto de apertar o botão tomou conta de mim. Porém, eu não o fiz. Uma fração de segundos antes de eu poder tocá-lo, uma corrente elétrica percorreu o meu corpo. Soltei um leve grito.
Confuso, eu olhei para os meus arredores. Dr. Milgram não estava mais lá. A tela começava uma nova contagem regressiva, agora, começando do número cinco.
Dessa vez, porém, eu estava preparado para aquilo.
Cinco... Quatro... Três... Dois... Um...
Eu apertei o botão o mais rápido que eu pude. Desta vez, porém, eu ouvi gritos pelos fones. Era uma voz feminina. Mas não qualquer uma. Era Ana que havia gritado.
Então, de repente, tudo fez sentido.
Eu e Ana estávamos realmente em algum jogo doentio.
Vítor! Ela gritou. Eu pude ouvir pelos fones.
Não aperte o botão, Ana! Gritei, torcendo para que ela também pudesse me ouvir.
Olhei rapidamente para a tela. Uma contagem regressiva já havia começado.
Dois, um...
Eu não apertei o botão. Entretanto, mais uma corrente elétrica percorreu o meu corpo, ainda mais potente que a primeira.
Droga! Eu gritei! Ana! Eu falei para você não apertar o botão!
Mas eu não apertei! Ela disse, claramente apavorada. Eu também levei um choque, Vítor...
Um porém: eu não havia ouvido ela gritar.
Então, ela estava mentindo? Ora...
Fazia sentido.
Afinal, se ela apertasse o botão, eu recebia o choque, e não ela.
Mais uma contagem regressiva se aproximava do fim.
Três, dois...
Vítor... Ana começou a murmurar.
Um...
Apertei o botão. Pelos fones, ouvi Ana gritar. Dessa vez, ela havia levado o choque.
Mais uma contagem regressiva começou. Dessa vez, começando do número sete.
Ana começou a dizer mais alguma coisa. Eu não me importei. Ela devia estar querendo desviar a minha atenção. Eu era o mais ágil. Se nada me distraísse, eu não levaria nenhum choque.
 Três, dois, um...
Mais uma vez, apertei o botão o mais rápido e forte que eu pude. Mais um grito de Ana. Dessa vez, ainda mais alto.
“Antes ela do que eu”. Pensei. “Ela faria o mesmo comigo...”.
Mais contagens regressivas vieram na tela. Mais vezes, Ana veio choramingar algo que eu, obviamente, ignorei. Mais vezes eu apertei o botão. Mais e mais alto, minha ex-namorada gritou.
Após algumas vezes, eu podia ouvir Ana através das paredes. Não mais eu precisava dos fones para ouvir seus gritos.
A adrenalina tomou conta de meu corpo. Eu certamente não estava gostando daquilo, mas eu sabia que eu estava em uma situação de vida ou morte. Enquanto o suor escorria pela minha face, eu não pude conter um sorriso.
Não sei quantas vezes eu apertei aquele maldito botão. Não sei quantas vezes Ana gritou. A única coisa que eu sei é que, algum tempo depois, ela parou de gritar. As contagens, entretanto, não cessaram.
Uma, duas, três contagens regressivas vieram ainda. Em nenhuma das vezes Ana gritou.
De repente, uma nova voz veio aos meus ouvidos pelos fones:
O experimento chegou ao seu fim.
Nesse mesmo momento, ele voltou à sala.
Dr. Milgram abriu a porta e veio direto até mim. Enquanto ele soltava os aparelhos de mim, eu senti medo. A mera presença do doutor já me fazia sentir assim.
Após alguns instantes de silêncio, Milgram disse:
Você parecia saber bem o que estava fazendo.
Eu... Eu não tive escolha. Respondi, trêmulo.
Por que não?
Porque... Eu parei por um instante para organizar a minha próxima frase. Porque alguém sempre teria que levar um choque...
Isso é verdade. Mas, diga-me: por que ela sim e você não?
Bem... Porque eu não queria morrer.
E você deixaria alguém que você amava morrer simplesmente?
Não... Eu acho que não...
Então por que você a deixou morrer?
Porque eu não a amava! Eu respondi, mais alto do que eu queria. Eu nunca a amei! Eu nunca sequer me importei com ela!
O Dr. Milgram manteve-se em silêncio por alguns instantes. Então, ele disse:
Ora... Interessante. Achei que vocês fossem um casal apaixonado. Afinal, pedimos por isso para o experimento, não é?
É... Eu murmurei, sem jeito. Mas...
Não lhe ocorreu que ela te amava?
Sim... Eu sabia, mas...
E você não percebeu que foi por isso que ela se deixou ser eletrocutada até a morte?
Eu fiquei paralisado. Eu não havia considerado aquela possibilidade. Eu não conseguia nem olhar na direção do Dr. Milgram. Enquanto isso, meus olhos se enchiam d’água.
Bruscamente, o doutor segurou o meu rosto e o virou na direção dele. Enquanto me olhava diretamente nos olhos, Milgram disse:
Não precisa chorar. Ele soltou o meu rosto. A porta se abriu novamente. Veja.
Pela porta, Ana veio até mim.
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela me deu um tapa no rosto.
Enquanto a minha face ardia, ela disse:
Eu ouvi tudo o que você disse.
Dr. Milgram riu baixo e, então, começou a falar:
Como você está vendo, Ana está bem. E, além disso, o experimento foi um sucesso.
Os dois olhavam para o meu rosto. Claramente, eu estava confuso.
O panfleto que eu te dei era falso. Explicou, amargamente, Ana. E essa era a intenção.
Sim. Concordou o doutor. Queríamos ver nesse experimento a verdadeira face da humanidade. E você foi uma ótima cobaia. Ele fez uma breve pausa enquanto sorria satisfeito. Você deixaria alguém que te ama morrer para se salvar. Você se considera superior aos outros com a única justificativa que “você é você”, ou seja, “as regras não deveriam se aplicar a mim, no meu ponto de vista, só por que eu não quero ser prejudicado”. Mas não se preocupe, pois você não é o único. Afinal, essa não foi a primeira vez que esse experimento foi conduzido.
As minhas falas e gritos haviam sido ensaiados, se é isso que está te deixando confuso. Esclareceu Ana. Eu não sofri nada. Não que você se preocupe.
Isso serviu também para outros dois propósitos. Acrescentou Milgram. O menos nobre: ajudar Ana a descobrir seus verdadeiros sentimentos em relação a ela. Obviamente, Ana olhou, para o doutor, um pouco irritada. Ele nem percebeu. E o outro, mais importante, foi testar como pessoas reagem sob medo. Você seguiu minhas ordens cegamente, sem contrariar, mesmo que simples, mesmo se sentindo desconfortável. Droga, você estava convencido que eu havia te forçado a matar um outro ser humano.
Eu ainda estava paralisado, sentado na cadeira, tentando entender tudo aquilo.
As coisas passaram rapidamente depois daquilo.
Dr. Milgram agradeceu pela ajuda no experimento. Calmamente, ele me deu metade do dinheiro prometido. Ana ficou com a outra metade. Como era de se esperar, eu nunca mais a vi ou falei com ela.
Alguns meses depois, um amigo meu conseguiu uma namorada, talvez ainda mais linda que Ana. E eu cheguei a conhecer a garota, para dizer a verdade. Ela era um amor, extremamente carinhosa com todos, especialmente com o novo namorado.
Porém, eu bem esse meu amigo. Ele era como eu. Quando ele ignorou a minha sugestão de terminar o namoro, o desgraçado me ignorou.
Algumas semanas depois, quando o meu amigo me contou que receberia quinhentos reais para participar de um estudo sobre casais, eu apenas sorri e disse:

Boa sorte.

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