Dr. Milgram
“Você me ama?”.
Era essa a pergunta que Ana, minha ex-namorada,
perguntava-me constantemente enquanto namorávamos. Com um sorriso no rosto, eu
respondia “sim, eu te amo” sem hesitar. Ela, então, sorria, parecendo ainda
mais bela.
Lindo, não? Seria. Por quê? Por que não era verdade.
Ana era linda, carismática e sempre tentava animar o meu
dia. Mas não era ela quem eu queria. Não que eu tivesse alguém em mente. E era
exatamente esse o problema. Nunca havia encontrado alguém que eu tivesse realmente
me apaixonado nessa vida. Por isso, eu nunca havia namorado antes.
Cansada de sair com os típicos bonitões estúpidos que só
se importavam com o corpo dela, Ana resolveu sair com alguém diferente. E foi
aí que tudo começou
Foi assim, de repente.
Nós éramos da mesma faculdade, do mesmo curso, porém, de
salas diferentes. Um dia qualquer, nós esbarramos no fim do dia. Ela tinha que
estudar para uma prova. Eu também. Fomos à biblioteca e tudo começou.
Eu não me lembro de nada demais daquele dia. Mas,
aparentemente, ela adorou passar aquele tempo comigo.
Pensando bem, ela deve ter gostado da novidade. Eu fui um
cara que não deu em cima dela por causa da aparência dela. Nos dias seguintes,
eu perguntava a ela como o dia dela havia sido, se estava tudo bem ou
perguntava sobre o que ela se interessava. Nada demais para mim. Um mundo
completamente novo para ela.
Não demorou a começarmos a namorar.
Meus amigos não acreditavam. Eles tinham inveja de mim
agora. Afinal, enquanto muitos deles não tinham sucesso com alguma garota, eu
sabia que eu tinha Ana me esperando no fim do dia.
E foi exatamente por isso que nós namoramos. Ela me
adorava. Eu achava a situação cômoda. Apenas isso.
Porém, na primeira vez que ela disse “eu te amo, Vítor”,
eu respondi “eu também te amo, Ana”. Foi algo muito natural para mim. Aquilo
fez com que ela ficasse muito feliz. E eu via que, futuramente, aquilo seria um
problema.
Se eu já havia pensado em terminar com ela? Claro que
sim. Mas, é como eu disse antes: comodismo. Caso desmanchássemos o namoro, eu
voltaria a ficar só. E não sabia por quanto tempo. Por isso, descartei tal
possibilidade. Não queria pensar muito no futuro.
Nos meses seguintes, eu cheguei a contar a situação para
alguns amigos, como forma de desabafo apenas. Por algum motivo, eu me sentia
mais leve depois de falar com eles. Entretanto, eu não acatava a nenhum
conselho deles. Afinal, eles tinham bom senso. Todos me falavam que a melhor
escolha seria terminar o namoro. Por isso mesmo que eu os ignorei.
Manti as amizades, bem como o namoro. Tudo seguia como o
planejado.
Porém, eu sentia que Ana não estava tão feliz comigo. Não
era pra menos. Nós mal saímos para fazer alguma coisa diferente. Bares e
restaurantes fast food eram os locais onde íamos comer juntos. Isso quando eu
me dava o trabalho de sair de casa.
Porém, o belíssimo sorriso no rosto de Ana nunca sumia.
Eu não a merecia. Eu sabia disso. Eu desconfiava que ela também soubesse.
Porém, um dia, ela me veio com uma ideia nova.
—
Um estudo sobre casais. —
Disse Ana, um dia, enquanto me entregava um panfleto. — Um centro de pesquisas está procurando
casais apaixonados para participarem de um estudo. Topa?
Eu hesitei. Rapidamente, li o papel que ela havia me
entregue. Não sabia onde era o lugar exatamente. Muito menos onde Ana havia
conseguido aquele panfleto. Aquilo foi um erro.
Porém, ao ler que os casais receberiam, ao todo,
quinhentos reais pela participação, eu não pensei antes de responder:
—
Topo.
O resto daquele dia passou rápido até, mesmo sendo
monótono.
Ao acordar seis da manhã no dia seguinte, eu nem
reclamei. Era domingo, eu não havia dormido tanto quanto eu gostaria, mas eu
teria duzentos e cinqüenta reais em mãos até a hora do almoço.
Eu já havia visto no dia anterior como eu deveria chegar
até o endereço. Por isso, dirigi o mais rápido possível até o local.
Ao chegar lá, juntamente com Ana, tive um mau pressentimento.
O prédio cinzento, pequeno e velho, não me parecia um centro de pesquisas. A
região, afastada do resto da cidade, próxima a uma região de mata fechada, era
pouco convidativa.
Mesmo assim, fomos até a porta do lugar. Por um
interfone, uma voz calma perguntou por que estávamos lá. Ao respondermos que
era por causa do estudo de casais, a porta se abriu no mesmo instante.
Ao entrarmos no prédio, fomos recebidos por uma mulher
com um largo, e quase artificial, sorriso. Vestida com uma camisa azul e calças
pretas, ela pediu que a seguíssemos.
Assim, eu e Ana andamos por um corredor, seguindo aquela
mulher. Com as fracas luzes amarelas piscando pelo caminho, eu sentia como se a
escuridão fosse me engolir.
A mulher a minha frente parecia que se distanciava a cada
instante. Ana se aproximou de mim, apertando meu braço delicadamente,
murmurando que estava com medo. Eu teria dito para ela se acalmar, mas eu sabia
que eu não conseguiria fazer o mesmo.
De repente, a mulher abriu uma porta à esquerda e entrou,
pedindo para que nós a acompanhássemos. Não questionamos.
Ao entrar lá, vimos uma sala incrivelmente branca e
limpa, como o consultório de um dentista. Nela, entretanto, não havia nada, com
a exceção de um homem.
Aquele era, como eu viria a descobrir em breve, o Dr.
Milgram. Trajando um jaleco branco, ele tinha quase dois metros de altura,
costas largas, barbas e cabelos brancos, além de óculos que pareciam um pouco
pequenos demais para ele.
Com sua voz grave, o doutor perguntou:
—
Prontos para o experimento?
O jeito que ele falou aquilo era um pouco perturbador. O
doutor parecia se referir a mim como uma cobaia.
Ao ver que Ana estava quieta do meu lado, resolvi
responder por nós dois:
—
Ah... Sim. Sim, estamos...
—
Ótimo! — Dr. Milgram
disse, praticamente rugindo. —
Agora... — Ele
apontou para as duas portas no fim da sala, uma ao lado da outra. — Vão. O homem para a da
direita. A mulher para a da esquerda.
Sem contestarmos, seguimos nas direções ordenadas até que
o doutor gritou:
—
Parem!
Nós obedecemos, apreensivos.
—
Virem-se e assinem isso. —
Milgram disse em seguida.
Quando olhamos de volta para ele, o doutor tinha uma
caneta e uma folha de papel em cada mão. Calmamente, pegamos os dois objetos.
Quando eu ia começar a ler o que estava no que deveria ser um contrato, algo
para certificar que estávamos cientes do que aconteceria e a responsabilidade
seria nossa, eu senti uma respiração pesada na minha frente.
Era Milgram. Ele apenas me encarava, irritado, com os
braços cruzados, bufando no meu rosto.
Resolvi não ler e assinar logo o papel. Ana fez o mesmo.
O doutor sorriu e disse:
—
Perfeito... Agora... Entrem nas respectivas salas.
Fizemos conforme ordenado. A recepcionista, que era,
aparentemente, também assistente do doutor, seguiu Ana. Eu, por outro lado,
tive o prazer de ser seguido por Milgram.
Adentrei a sala. Não havia luz até o doutor as ascender
atrás de mim. Ao ver na sala, senti vontade de dar meia volta e deixar o lugar.
Entretanto, algo me dizia que o Dr. Milgram seria contra.
O teto, o piso e o chão. Tudo era tingido de um tom de cinza
decrépito. Inclusive a maldita cadeira no centro da sala.
Feita de aço com um estofamento de couro preto gasto,
aquilo mais parecia um instrumento de tortura. E, como eu imaginava, Milgram me
mandou sentar nela.
Eu senti o frio do metal dos braços da cadeira nos meus próprios
braços. Bruscamente, o doutor apertou o cinto da cadeira na minha cintura.
Em seguida, foram os meus braços. Três pequenas faixas
prendiam firmemente eles à cadeira.
Por último, veio aquilo. O que me parecia ser um capacete
foi preso na minha cabeça, comprimindo-a. Também senti algo como algumas
ventosas prendendo-se em minha nuca e testa. Além disso, havia algum tipo de
fone dentro daquilo. Eu só fui descobrir aquilo quando eu ouvi:
—
Prepare-se.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, eu olhei para
o Dr. Milgram. Ele apontava para uma pequena tela quase no teto da sala. Eu não
havia notado aquilo até o momento.
Com um controle remoto, o doutor ligou a pequena
televisão. Uma contagem regressiva começou.
Três...
Eu ouvi um clique metálico perto de mim. Demorei um pouco
para perceber o que havia acontecido.
Dois...
No braço esquerdo da cadeira, a milímetros de meu punho
fechado, estava um botão vermelho. Eu tinha certeza que ele não estava ali
antes.
Um...
Um ímpeto de apertar o botão tomou conta de mim. Porém,
eu não o fiz. Uma fração de segundos antes de eu poder tocá-lo, uma corrente
elétrica percorreu o meu corpo. Soltei um leve grito.
Confuso, eu olhei para os meus arredores. Dr. Milgram não
estava mais lá. A tela começava uma nova contagem regressiva, agora, começando
do número cinco.
Dessa vez, porém, eu estava preparado para aquilo.
Cinco... Quatro... Três... Dois... Um...
Eu apertei o botão o mais rápido que eu pude. Desta vez,
porém, eu ouvi gritos pelos fones. Era uma voz feminina. Mas não qualquer uma.
Era Ana que havia gritado.
Então, de repente, tudo fez sentido.
Eu e Ana estávamos realmente em algum jogo doentio.
—
Vítor! — Ela gritou.
Eu pude ouvir pelos fones.
—
Não aperte o botão, Ana! —
Gritei, torcendo para que ela também pudesse me ouvir.
Olhei rapidamente para a tela. Uma contagem regressiva já
havia começado.
Dois, um...
Eu não apertei o botão. Entretanto, mais uma corrente
elétrica percorreu o meu corpo, ainda mais potente que a primeira.
—
Droga! — Eu gritei! — Ana! Eu falei para você
não apertar o botão!
—
Mas eu não apertei! —
Ela disse, claramente apavorada. —
Eu também levei um choque, Vítor...
Um porém: eu não havia ouvido ela gritar.
Então, ela estava mentindo? Ora...
Fazia sentido.
Afinal, se ela apertasse o botão, eu recebia o choque, e
não ela.
Mais uma contagem regressiva se aproximava do fim.
Três, dois...
—
Vítor... — Ana
começou a murmurar.
Um...
Apertei
o botão. Pelos fones, ouvi Ana gritar. Dessa vez, ela havia levado o choque.
Mais
uma contagem regressiva começou. Dessa vez, começando do número sete.
Ana
começou a dizer mais alguma coisa. Eu não me importei. Ela devia estar querendo
desviar a minha atenção. Eu era o mais ágil. Se nada me distraísse, eu não
levaria nenhum choque.
Três, dois, um...
Mais
uma vez, apertei o botão o mais rápido e forte que eu pude. Mais um grito de
Ana. Dessa vez, ainda mais alto.
“Antes
ela do que eu”. Pensei. “Ela faria o mesmo comigo...”.
Mais
contagens regressivas vieram na tela. Mais vezes, Ana veio choramingar algo que
eu, obviamente, ignorei. Mais vezes eu apertei o botão. Mais e mais alto, minha
ex-namorada gritou.
Após
algumas vezes, eu podia ouvir Ana através das paredes. Não mais eu precisava
dos fones para ouvir seus gritos.
A
adrenalina tomou conta de meu corpo. Eu certamente não estava gostando daquilo,
mas eu sabia que eu estava em uma situação de vida ou morte. Enquanto o suor
escorria pela minha face, eu não pude conter um sorriso.
Não
sei quantas vezes eu apertei aquele maldito botão. Não sei quantas vezes Ana
gritou. A única coisa que eu sei é que, algum tempo depois, ela parou de
gritar. As contagens, entretanto, não cessaram.
Uma,
duas, três contagens regressivas vieram ainda. Em nenhuma das vezes Ana gritou.
De
repente, uma nova voz veio aos meus ouvidos pelos fones:
— O experimento
chegou ao seu fim.
Nesse
mesmo momento, ele voltou à sala.
Dr.
Milgram abriu a porta e veio direto até mim. Enquanto ele soltava os aparelhos
de mim, eu senti medo. A mera presença do doutor já me fazia sentir assim.
Após
alguns instantes de silêncio, Milgram disse:
— Você parecia
saber bem o que estava fazendo.
—Eu... Eu não
tive escolha. — Respondi,
trêmulo.
— Por que não?
— Porque... — Eu parei por um instante para organizar a
minha próxima frase. —
Porque alguém
sempre teria que levar um choque...
— Isso é
verdade. Mas, diga-me: por que ela sim e você não?
— Bem... Porque
eu não queria morrer.
— E você
deixaria alguém que você amava morrer simplesmente?
— Não... Eu acho
que não...
— Então por que
você a deixou morrer?
— Porque eu não
a amava! — Eu respondi,
mais alto do que eu queria. — Eu nunca a
amei! Eu nunca sequer me importei com ela!
O
Dr. Milgram manteve-se em silêncio por alguns instantes. Então, ele disse:
— Ora...
Interessante. Achei que vocês fossem um casal apaixonado. Afinal, pedimos por
isso para o experimento, não é?
— É... — Eu murmurei, sem jeito. — Mas...
— Não lhe
ocorreu que ela te amava?
— Sim... Eu
sabia, mas...
— E você não
percebeu que foi por isso que ela se deixou ser eletrocutada até a morte?
Eu
fiquei paralisado. Eu não havia considerado aquela possibilidade. Eu não
conseguia nem olhar na direção do Dr. Milgram. Enquanto isso, meus olhos se
enchiam d’água.
Bruscamente,
o doutor segurou o meu rosto e o virou na direção dele. Enquanto me olhava
diretamente nos olhos, Milgram disse:
— Não precisa
chorar. — Ele soltou o
meu rosto. A porta se abriu novamente. — Veja.
Pela
porta, Ana veio até mim.
Antes
que eu pudesse dizer alguma coisa, ela me deu um tapa no rosto.
Enquanto
a minha face ardia, ela disse:
— Eu ouvi tudo o
que você disse.
Dr.
Milgram riu baixo e, então, começou a falar:
— Como você está
vendo, Ana está bem. E, além disso, o experimento foi um sucesso.
Os
dois olhavam para o meu rosto. Claramente, eu estava confuso.
— O panfleto que
eu te dei era falso. — Explicou,
amargamente, Ana. — E essa era a
intenção.
— Sim. — Concordou o doutor. — Queríamos ver nesse experimento a verdadeira
face da humanidade. E você foi uma ótima cobaia. — Ele fez uma breve pausa enquanto sorria satisfeito. — Você deixaria alguém que te ama morrer para
se salvar. Você se considera superior aos outros com a única justificativa que “você
é você”, ou seja, “as regras não deveriam se aplicar a mim, no meu ponto de
vista, só por que eu não quero ser prejudicado”. Mas não se preocupe, pois você
não é o único. Afinal, essa não foi a primeira vez que esse experimento foi
conduzido.
— As minhas
falas e gritos haviam sido ensaiados, se é isso que está te deixando confuso. — Esclareceu Ana. — Eu não sofri nada. Não que você se preocupe.
— Isso serviu
também para outros dois propósitos. — Acrescentou
Milgram. — O menos nobre:
ajudar Ana a descobrir seus verdadeiros sentimentos em relação a ela. — Obviamente, Ana olhou, para o doutor, um
pouco irritada. Ele nem percebeu. — E o outro,
mais importante, foi testar como pessoas reagem sob medo. Você seguiu minhas
ordens cegamente, sem contrariar, mesmo que simples, mesmo se sentindo desconfortável.
Droga, você estava convencido que eu havia te forçado a matar um outro ser
humano.
Eu
ainda estava paralisado, sentado na cadeira, tentando entender tudo aquilo.
As
coisas passaram rapidamente depois daquilo.
Dr.
Milgram agradeceu pela ajuda no experimento. Calmamente, ele me deu metade do
dinheiro prometido. Ana ficou com a outra metade. Como era de se esperar, eu
nunca mais a vi ou falei com ela.
Alguns
meses depois, um amigo meu conseguiu uma namorada, talvez ainda mais linda que
Ana. E eu cheguei a conhecer a garota, para dizer a verdade. Ela era um amor, extremamente
carinhosa com todos, especialmente com o novo namorado.
Porém,
eu bem esse meu amigo. Ele era como eu. Quando ele ignorou a minha sugestão de
terminar o namoro, o desgraçado me ignorou.
Algumas
semanas depois, quando o meu amigo me contou que receberia quinhentos reais
para participar de um estudo sobre casais, eu apenas sorri e disse:
— Boa sorte.
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