terça-feira, 28 de julho de 2015

Nightmareland, Capítulo 12

O Coveiro


Naquele momento, eu não sabia dizer exatamente onde estávamos.
Andando lentamente por aquele lugar sem vida, juntamente com o velho homem montado em seu cavalo, eu sentia como se eu estivesse em algum cenário de faroeste. Com umas poucas e óbvias diferenças, é claro. Afinal, eu preferia ver o sol naquele momento, não importando o quão escaldante ele estivesse. E, é claro, não apareceriam bandidos armados com revólveres e usando chapéus de couro. Algo muito pior apareceria. E eu não tinha como saber ou ver.
Eu poderia xingar a névoa daquele lugar, bem como o maldito frio, mas do que isso adiantaria? Nada.
O velho montado no cavalo não havia dito uma palavra desde que eu comecei a acompanhá-lo. Pensei em tentar puxar algum assunto com ele, mas julguei que talvez aquela não fosse uma ideia muito boa. Quando eu estava prestes a abrir a minha boca, senti algo estranho.
Eu não tenho certeza, mas acredito que o velho tenha me fitado por uma fração de segundos, discretamente, por cima do ombro esquerdo. O ar pareceu ficar mais pesado a minha volta naquele breve instante. Um súbito mal estar me atingiu. Algumas imagens sem nexo, todas em preto e branco, surgiram em minha mente.
E foi assim que eu desisti de falar com o velho. Além disso, fiquei com uma leve dor de cabeça.
Porém, aquilo logo passou. Afinal, eu estava em Nightmareland e os humanos se recuperavam mais rápido de, pelo visto, qualquer coisa.
Dores de cabeça não eram nada. Para quem podia se recuperar de ferimentos graves e recuperar toda a energia para voltar a correr em instantes, algo banal como aquilo não era nada.
Acabei pensando em Eric Fields novamente. Afinal, havia sido ele quem havia me ensinado sobre esse, digamos, super poder nosso.
Virar as costas para ele não havia sido algo tão fácil quanto pôde ter parecido. Eu queria ter podido confiar nele. Ficar vagando naquele lugar sozinho não era o que eu desejava.
Agora, porém, eu não estava mais sozinho.
Lá estava eu, andando pelo desconhecido, junto de alguém que eu nem sabia se era humano e que não falava nada sobre si.
Eu comecei a pensar mais a fundo sobre o tal “coveiro”. Aliás, comecei a pensar a fundo sobre a Cidade da Névoa.
Seria o lugar um local povoado por pessoas como eu? Pessoas que foram presas nesse lugar por aquele demônio sádico e, que ao invés de tentarem fugir, resolveram tentar sobreviver aqui? Ou, então, seria uma cidade de monstros? E, se sim, qual seria a relação daquele velho com o lugar? Se ele fosse um monstro, por que ele não me matou ainda? Por que eu não sentia que ele me atacaria? Por que eu tinha a impressão que ele estava ali para me ajudar?
Eu estava tão perdido em pensamentos sem sentido que quase não percebi aquilo.
O problema não era o que eu ouvia. E, sim, exatamente o que eu não ouvia.
Sons distantes de passos. Rugidos e grunhidos que pareciam se aproximar a cada segundo. Suspiros que vinham até os meus ouvidos. Nada disso vinha até mim.
Desde que eu havia começado a acompanhar aquele velho, a ameaça de Nightmareland parecia haver, de certa forma, acabado. Eu simplesmente tinha o pressentimento que nada surgiria para me atacar.
Talvez o velho tivesse assustando os monstros com aquele olhar dele. Era uma possibilidade que eu não descartaria tão cedo.
Podemos parar por aqui. O velho disse repentinamente.
O cavalo parou de andar. Eu parei logo em seguida.
Rapidamente, olhei em volta. Eu conseguia ver apenas a maldita neblina.
Algo de errado? O coveiro perguntou sem muita emoção.
Não há nada aqui. Eu respondi decepcionado. Eu esperava...
Ver mais alguém?
Bem... Sim.
Entendo... Ele fez uma breve pausa. Essa não deveria ser a sua maior preocupação, garoto. Pelo menos, não em Nightmareland.
Eu me mantive em silêncio, apenas olhando para o homem montado no cavalo. Eu sabia que ele continuaria falando.
O coveiro desviou o olhar de mim, olhando para o horizonte coberto de neblina. Ele respirou fundo antes de dizer:
Você já passou por muita coisa até vir aqui, não é?
Coisa até demais... Respondi.
Mas, mesmo assim, você está vivo. Ele olhou diretamente para mim. Você sabe que nem todos têm essa sorte, não é?
Eu queria responder que sim, mas não consegui.
Eu me pergunto se isso o que eu tenho é realmente sorte. Falei.
Como assim? O velho perguntou.
A morte... Murmurei. Ela quase me parece uma salvação. Já vi um homem, condenado a esse lugar terrível, morrer. Também vi uma mulher sofrer o mesmo destino, mesmo que por meio de uma...bem...visão.
A morte deles foi terrível, tenho certeza.
Sim... Mas o sofrimento deles acabou agora.
Você que acha...
Eu inclinei minha cabeça levemente ara a esquerda enquanto eu o encarava. O velho desviou o olhar, voltando seus olhos em direção ao horizonte coberto pela névoa.
Foi aí que eu tive certeza.
O coveiro sabia de muita coisa. Como? Isso eu não sabia. Mas era o que eu estava prestes a descobrir. E, também, descobriria o que mais ele sabia.
Tem muita coisa em Nightmareland que você não conhece. O coveiro disse, ainda olhando para o nada. E é melhor que continue assim... Ele olhou rapidamente para mim. A não ser que você esteja preparado para ouvir coisas que você não gostaria de saber.
O jeito que ele disse aquilo me deixou um pouco apreensivo.
Mas, droga, eu tinha que saber.
Fale. Eu pedi, quase como se eu tivesse dado uma ordem. Eu tenho que saber.
Com um sorriso amarelo, o coveiro murmurou:
  Certo... Ele bufou. Por onde devo começar?
Sobre o que acontece com quem morre aqui. Você deu a entender que eles ainda sofrem, mesmo apesar de não estarem vivos. Fiz uma breve pausa. Eles...são atormentados por algo?
Sim. Disso você pode ter certeza. Ele exibiu um sorriso pavoroso. Afinal, estamos num lugar pior que o inferno, não é mesmo?
Um calafrio me percorreu a espinha. Aquele velho não era normal. Isso era certo. Mas ele também não mentia. Isso era a minha outra certeza.
Apesar de um pouco hesitante, perguntei:
E como, exatamente, eles sofrem?
Eles são atormentados por suas maiores frustrações. O velho segurou seu riso. Noite e dia, os pobrezinhos vivem vendo o rosto daqueles que os traíram e dos sonhos que escaparam por entre seus dedos. O ódio e o desespero corroem suas almas pouco a pouco. Em pouco tempo, pouco sobra de sua humanidade. O desejo de matar e causar dor se torna maior do que qualquer coisa que eles já sentiram em vida. Sua aparência se torna tão doentia quanto sua falta de compaixão.
Eu permaneci em silêncio por alguns instantes, boquiaberto, pensando.
Só havia uma conclusão a qual eu poderia chegar. E era essa mesma que eu tentava negar.
Não pude deixar de pensar em Eric Fields e sua suposta amada.
Aqueles que morrem aqui...se transformam em monstros?
Sim. O coveiro sorriu. Sem exceção. Ele fez uma breve pausa. Só espero que você não tenha feito, e nem vá fazer, algo para provocar a ira de algum humano preso em Nightmareland. Afinal...essa pessoa virá atrás de você...
Não... Eu murmurei. Eric...
Eric, hein? Ele riu. Esse é o nome daquele que vai te matar?
Como ele faria isso!?
Como ele vai te matar? Ora... Tem vários jeitos... E isso vai depender muito do monstro que ele se tornou...
Não isso!
Então o quê?
Como ele vai vir atrás de mim!?
Ah... Essa é uma boa pergunta. Ele fez uma breve pausa. Mas não se preocupe. Ele vai dar um jeito. A vontade de ele se vingar o guiará.
Pensei rapidamente sobre Fields e o mostro que veio atrás dele. Aparentemente, ele já fugia dela há muito tempo. Mas a mulher sempre o achava.
Eles querem...vingança... Balbuciei. Como? Achei que a humanidade deles havia se extinguido... Como eles poderiam se lembrar de alguém que os condenou?
Eu disse que pouca sobra da humanidade deles. Preste mais atenção da próxima. Ele coçou a barba e olhou para mim. Ele riu. O medo nos meus olhos deveria ser engraçado para ele. Enfim... A humanidade deles também serve para outra coisa...
E...o que seria?
Para sofrer. O coveiro sorriu. Afinal, nem todas as pessoas que eles perseguem e matam é por vingança. Os pobrezinhos não têm controle da maioria delas. Mas se sentem culpados por elas. Se pudessem, chorariam, talvez até tentassem se matar. Mas não podem. Não podem fazer nada...anão ser assistir a matança feita por eles.
Eu fiquei em silêncio. Tudo aquilo era muita informação de uma vez. Pensar que eu poderia sofrer uma morte dolorosa e, ainda por cima, sofrer pelo resto da eternidade sem poder fazer nada...
Mas eu não morreria. Fraquejar não era uma opção.
Eu tinha que ser forte para sair de lá. Custe o que custar.
Mas, antes, eu tinha uma pergunta a fazer:
Se os monstros foram criados, mesmo que sem a intenção, por outros monstros... Então devem haver monstros originais daqui, certo?
O velho sorriu, exibindo dentes que mais pareciam presas agora, e respondeu:
Sim. Demônios, como aquele que criou Nightmareland e que se diverte ao ver você, e os outros humanos, sofrer aqui. Porém, nós somos muito mais poderosos do que qualquer monstro que tenha tentado te atacar.
Sua voz foi se tornando mais grave e profunda a cada palavra que ele dizia.
Inutilmente, eu comecei a andar, de costas, para trás, distanciando-me do coveiro.
Com uma risada maníaca, seu corpo começou a mudar de forma, fundindo-se com a de sua montaria em uma massa arroxeada e escura.
A risada continuava. O chão começava a tremer.
Sem equilíbrio, acabei caindo para trás, diretamente para dentro de um buraco.
Minhas costas bateram no chão de terra. Eu deixei um leve grito de dor escapar.
Eu havia caído mais de cinco metros e não sabia. Afinal, com toda aquela neblina, eu não tinha como saber que eu estava em uma cova aberta.
Eu olhei para cima, desesperado.
Por entre o nevoeiro cinzento, tudo o que eu podia ver eram os olhos vermelhos daquele demônio.
Sabe o que seria engraçado para mim e aterrorizante para você agora? Ele perguntou com sua voz profunda.
Ele não me deu tempo para responder.
Eu não podia ver, mas podia ouvi-lo mexendo sua pá, de um lado para o outro, como se brincasse com o instrumento.

Em um instante, ele começou a rir incontrolavelmente enquanto jogava, lentamente, punhados e mais punhados de terra para dentro da cova.

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