O Coveiro
Naquele momento, eu não sabia dizer exatamente onde
estávamos.
Andando lentamente por aquele lugar sem vida, juntamente
com o velho homem montado em seu cavalo, eu sentia como se eu estivesse em
algum cenário de faroeste. Com umas poucas e óbvias diferenças, é claro.
Afinal, eu preferia ver o sol naquele momento, não importando o quão escaldante
ele estivesse. E, é claro, não apareceriam bandidos armados com revólveres e
usando chapéus de couro. Algo muito pior apareceria. E eu não tinha como saber
ou ver.
Eu poderia xingar a névoa daquele lugar, bem como o
maldito frio, mas do que isso adiantaria? Nada.
O velho montado no cavalo não havia dito uma palavra
desde que eu comecei a acompanhá-lo. Pensei em tentar puxar algum assunto com
ele, mas julguei que talvez aquela não fosse uma ideia muito boa. Quando eu
estava prestes a abrir a minha boca, senti algo estranho.
Eu não tenho certeza, mas acredito que o velho tenha me
fitado por uma fração de segundos, discretamente, por cima do ombro esquerdo. O
ar pareceu ficar mais pesado a minha volta naquele breve instante. Um súbito
mal estar me atingiu. Algumas imagens sem nexo, todas em preto e branco,
surgiram em minha mente.
E foi assim que eu desisti de falar com o velho. Além
disso, fiquei com uma leve dor de cabeça.
Porém, aquilo logo passou. Afinal, eu estava em
Nightmareland e os humanos se recuperavam mais rápido de, pelo visto, qualquer
coisa.
Dores de cabeça não eram nada. Para quem podia se
recuperar de ferimentos graves e recuperar toda a energia para voltar a correr
em instantes, algo banal como aquilo não era nada.
Acabei pensando em Eric Fields novamente. Afinal, havia
sido ele quem havia me ensinado sobre esse, digamos, super poder nosso.
Virar as costas para ele não havia sido algo tão fácil
quanto pôde ter parecido. Eu queria ter podido confiar nele. Ficar vagando
naquele lugar sozinho não era o que eu desejava.
Agora, porém, eu não estava mais sozinho.
Lá estava eu, andando pelo desconhecido, junto de alguém
que eu nem sabia se era humano e que não falava nada sobre si.
Eu comecei a pensar mais a fundo sobre o tal “coveiro”.
Aliás, comecei a pensar a fundo sobre a Cidade da Névoa.
Seria o lugar um local povoado por pessoas como eu?
Pessoas que foram presas nesse lugar por aquele demônio sádico e, que ao invés
de tentarem fugir, resolveram tentar sobreviver aqui? Ou, então, seria uma
cidade de monstros? E, se sim, qual seria a relação daquele velho com o lugar?
Se ele fosse um monstro, por que ele não me matou ainda? Por que eu não sentia
que ele me atacaria? Por que eu tinha a impressão que ele estava ali para me
ajudar?
Eu estava tão perdido em pensamentos sem sentido que
quase não percebi aquilo.
O problema não era o que eu ouvia. E, sim, exatamente o
que eu não ouvia.
Sons distantes de passos. Rugidos e grunhidos que
pareciam se aproximar a cada segundo. Suspiros que vinham até os meus ouvidos.
Nada disso vinha até mim.
Desde que eu havia começado a acompanhar aquele velho, a
ameaça de Nightmareland parecia haver, de certa forma, acabado. Eu simplesmente
tinha o pressentimento que nada surgiria para me atacar.
Talvez o velho tivesse assustando os monstros com aquele
olhar dele. Era uma possibilidade que eu não descartaria tão cedo.
—
Podemos parar por aqui. —
O velho disse repentinamente.
O cavalo parou de andar. Eu parei logo em seguida.
Rapidamente, olhei em volta. Eu conseguia ver apenas a
maldita neblina.
—
Algo de errado? — O coveiro
perguntou sem muita emoção.
—
Não há nada aqui. —
Eu respondi decepcionado. —
Eu esperava...
—
Ver mais alguém?
—
Bem... Sim.
—
Entendo... — Ele fez
uma breve pausa. —
Essa não deveria ser a sua maior preocupação, garoto. Pelo menos, não em
Nightmareland.
Eu me mantive em silêncio, apenas olhando para o homem
montado no cavalo. Eu sabia que ele continuaria falando.
O coveiro desviou o olhar de mim, olhando para o
horizonte coberto de neblina. Ele respirou fundo antes de dizer:
—
Você já passou por muita coisa até vir aqui, não é?
—
Coisa até demais... —
Respondi.
—
Mas, mesmo assim, você está vivo. —
Ele olhou diretamente para mim. —
Você sabe que nem todos têm essa sorte, não é?
Eu queria responder que sim, mas não consegui.
—
Eu me pergunto se isso o que eu tenho é realmente sorte. — Falei.
—
Como assim? — O velho
perguntou.
—
A morte... —
Murmurei. — Ela quase
me parece uma salvação. Já vi um homem, condenado a esse lugar terrível, morrer.
Também vi uma mulher sofrer o mesmo destino, mesmo que por meio de
uma...bem...visão.
—
A morte deles foi terrível, tenho certeza.
—
Sim... Mas o sofrimento deles acabou agora.
—
Você que acha...
Eu inclinei minha cabeça levemente ara a esquerda
enquanto eu o encarava. O velho desviou o olhar, voltando seus olhos em direção
ao horizonte coberto pela névoa.
Foi aí que eu tive certeza.
O coveiro sabia de muita coisa. Como? Isso eu não sabia.
Mas era o que eu estava prestes a descobrir. E, também, descobriria o que mais
ele sabia.
—
Tem muita coisa em Nightmareland que você não conhece. — O coveiro disse, ainda olhando para o nada. — E é melhor que continue
assim... — Ele olhou
rapidamente para mim. —
A não ser que você esteja preparado para ouvir coisas que você não gostaria de
saber.
O jeito que ele disse aquilo me deixou um pouco
apreensivo.
Mas, droga, eu tinha que saber.
—
Fale. — Eu pedi,
quase como se eu tivesse dado uma ordem. —
Eu tenho que saber.
Com um sorriso amarelo, o coveiro murmurou:
— Certo... — Ele bufou. — Por onde devo começar?
—
Sobre o que acontece com quem morre aqui. Você deu a entender que eles ainda
sofrem, mesmo apesar de não estarem vivos. —
Fiz uma breve pausa. —
Eles...são atormentados por algo?
—
Sim. Disso você pode ter certeza. —
Ele exibiu um sorriso pavoroso. —
Afinal, estamos num lugar pior que o inferno, não é mesmo?
Um calafrio me percorreu a espinha. Aquele velho não era
normal. Isso era certo. Mas ele também não mentia. Isso era a minha outra
certeza.
Apesar de um pouco hesitante, perguntei:
—
E como, exatamente, eles sofrem?
—
Eles são atormentados por suas maiores frustrações. — O velho segurou seu riso. — Noite e dia, os
pobrezinhos vivem vendo o rosto daqueles que os traíram e dos sonhos que
escaparam por entre seus dedos. O ódio e o desespero corroem suas almas pouco a
pouco. Em pouco tempo, pouco sobra de sua humanidade. O desejo de matar e
causar dor se torna maior do que qualquer coisa que eles já sentiram em vida. Sua
aparência se torna tão doentia quanto sua falta de compaixão.
Eu permaneci em silêncio por alguns instantes,
boquiaberto, pensando.
Só havia uma conclusão a qual eu poderia chegar. E era
essa mesma que eu tentava negar.
Não pude deixar de pensar em Eric Fields e sua suposta
amada.
—
Aqueles que morrem aqui...se transformam em monstros?
—
Sim. — O coveiro
sorriu. — Sem
exceção. — Ele fez
uma breve pausa. — Só
espero que você não tenha feito, e nem vá fazer, algo para provocar a ira de
algum humano preso em Nightmareland. Afinal...essa pessoa virá atrás de você...
—
Não... — Eu murmurei.
— Eric...
—
Eric, hein? — Ele
riu. — Esse é o nome
daquele que vai te matar?
—
Como ele faria isso!?
—
Como ele vai te matar? Ora... Tem vários jeitos... E isso vai depender muito do
monstro que ele se tornou...
—
Não isso!
—
Então o quê?
—
Como ele vai vir atrás de mim!?
—
Ah... Essa é uma boa pergunta. —
Ele fez uma breve pausa. —
Mas não se preocupe. Ele vai dar um jeito. A vontade de ele se vingar o guiará.
Pensei rapidamente sobre Fields e o mostro que veio atrás
dele. Aparentemente, ele já fugia dela há muito tempo. Mas a mulher sempre o
achava.
—
Eles querem...vingança... —
Balbuciei. — Como?
Achei que a humanidade deles havia se extinguido... Como eles poderiam se
lembrar de alguém que os condenou?
—
Eu disse que pouca sobra da humanidade deles. Preste mais atenção da próxima. — Ele coçou a barba e olhou
para mim. Ele riu. O medo nos meus olhos deveria ser engraçado para ele. — Enfim... A humanidade
deles também serve para outra coisa...
—
E...o que seria?
—
Para sofrer. — O
coveiro sorriu. —
Afinal, nem todas as pessoas que eles perseguem e matam é por vingança. Os
pobrezinhos não têm controle da maioria delas. Mas se sentem culpados por elas.
Se pudessem, chorariam, talvez até tentassem se matar. Mas não podem. Não podem
fazer nada...anão ser assistir a matança feita por eles.
Eu fiquei em silêncio. Tudo aquilo era muita informação
de uma vez. Pensar que eu poderia sofrer uma morte dolorosa e, ainda por cima,
sofrer pelo resto da eternidade sem poder fazer nada...
Mas eu não morreria. Fraquejar não era uma opção.
Eu tinha que ser forte para sair de lá. Custe o que
custar.
Mas, antes, eu tinha uma pergunta a fazer:
—
Se os monstros foram criados, mesmo que sem a intenção, por outros monstros...
Então devem haver monstros originais daqui, certo?
O velho sorriu, exibindo dentes que mais pareciam presas
agora, e respondeu:
—
Sim. Demônios, como aquele que criou Nightmareland e que se diverte ao ver você,
e os outros humanos, sofrer aqui. Porém, nós somos muito mais poderosos do que
qualquer monstro que tenha tentado te atacar.
Sua voz foi se tornando mais grave e profunda a cada palavra
que ele dizia.
Inutilmente, eu comecei a andar, de costas, para trás,
distanciando-me do coveiro.
Com uma risada maníaca, seu corpo começou a mudar de
forma, fundindo-se com a de sua montaria em uma massa arroxeada e escura.
A risada continuava. O chão começava a tremer.
Sem equilíbrio, acabei caindo para trás, diretamente para
dentro de um buraco.
Minhas costas bateram no chão de terra. Eu deixei um leve
grito de dor escapar.
Eu havia caído mais de cinco metros e não sabia. Afinal,
com toda aquela neblina, eu não tinha como saber que eu estava em uma cova
aberta.
Eu olhei para cima, desesperado.
Por entre o nevoeiro cinzento, tudo o que eu podia ver eram
os olhos vermelhos daquele demônio.
—
Sabe o que seria engraçado para mim e aterrorizante para você agora? — Ele perguntou com sua voz
profunda.
Ele não me deu tempo para responder.
Eu não podia ver, mas podia ouvi-lo mexendo sua pá, de um
lado para o outro, como se brincasse com o instrumento.
Em um instante, ele começou a rir incontrolavelmente
enquanto jogava, lentamente, punhados e mais punhados de terra para dentro da
cova.
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