Cercado
Aquela era a minha única escolha.
Sem poder ver nada além de um metro de distância de mim,
graças àquela maldita névoa, eu resolvi confiar no caminho pavimentado com
piche negro sob meus pés. Afinal, se eu seguisse por aquele caminho, nada de
errado aconteceria.
Certo?
Ora, é de Nightmareland que eu estou falando. É claro que
algo ruim aconteceria.
A cada passo que eu dava, a névoa cinzenta se tornava
mais fria e densa. Após alguns minutos, eu mal podia ver o chão vinte
centímetros a minha frente.
Pelo menos, o piche preto era a minha estrada de tijolos
amarelos. Se eu seguisse o asfalto, chegaria à cidade.
Mas algo tinha que vir para tirar a minha atenção do
trajeto.
Uma luz escarlate brilhou à minha direita. Senti a pele
de meu rosto esquentar e meu olho arder. Poucos instantes depois, a chama se
apagou.
Dei mais cinco passos para frente, no máximo. Outra chama
surgiu. Agora, a luz brilhava do meu lado esquerdo e, bem como a outra, se foi
em questão de segundos.
Meu corpo começou a formigar. Comecei a ficar tenso. Meus
passos se tornaram mais largos e mais rápidos. Parecia que, a qualquer momento,
eu teria que correr pela minha vida.
De repente, eu ouvi aquilo.
O que começou como um som vindo de longe se intensificou,
tornando-se mais claro e mais inquietante.
Eram passos, mas não como o de pessoas. Eram o som de
cascos que pareciam se aproximar de mim, como se alguém, ou algo, viesse
montado em um cavalo.
Comecei a achar que eu estava ficando louco. Os sons
deveriam ser obra de minha imaginação.
Alguns instantes se passaram e, como de esperado, veio o
silêncio. Nada mais parecia me seguir.
Consegui respirar com mais facilidade. Após um longo
suspiro, olhei rapidamente para o chão. Meus pés ainda andavam pelo caminho
pavimentado. Estava tudo certo.
Aquele pensamento foi o suficiente para trazer um
discreto, porém genuíno, sorriso ao meu rosto. Mas é claro que aquilo não
durou.
Metros atrás de mim, eu ouvi um relincho.
Meu coração acelerou. Rapidamente, olhei para trás. Eu
engoli em seco.
Duas esferas de luz escarlate brilhavam. Elas estavam
longe, porém, não por muito tempo.
Quando eu ouvi o som dos cascos vindo rapidamente em minha
direção, apenas um pensamento me ocorreu.
O mais rápido que pude, eu me joguei para o lado,
executando uma cambalhota mal feita. Porém, aquilo foi o suficiente para me
salvar.
O cavalo passou correndo por mim. Com o animal, estava
seu cavaleiro.
Não pude ver precisamente como eles eram. Foi tudo muito
rápido, afinal, logo eles haviam sumido na neblina. Mas posso afirmar que eles
não pareciam vivos.
Tanto o cavalo quanto a pessoa que o cavalgava eram
pálidas, praticamente translúcidas, além de magras, quase esqueléticas. Quase
não pareciam reais. Porém, um detalhe me dava a certeza de que aquilo não havia
sido nenhum tipo de alucinação.
A pessoa que cavalgava o animal carregava algo muito
real. A arma parecia feita completamente de prata. Era basicamente composta por
duas simples partes. A primeira era uma longa haste. A outra era uma lâmina no
formato de uma lua crescente.
Sim, o cavaleiro desconhecido manejava uma foice como a
de ceifador. E a lâmina daquela arma me acertou.
Eu me levantei e vi o sangue escorrendo. O ferimento
ardia. Eu tentei ser otimista. Afinal, se eu não tivesse pulado para o lado,
talvez o corte fosse em um lugar um pouco mais grave do que em meu antebraço
esquerdo.
Eu me lembrei do que Eric Fields havia me dito. Algo
sobre o como nos curávamos mais rápido em Nightmareland. Após um suspiro,
esbocei um sorriso. O ferimento ardia, mas não havia realmente nada que eu
pudesse fazer. Só podia esperar que a dor passasse e meu braço se recuperasse
rápido.
Antes que eu pudesse voltar a andar, senti algo. Era
calor.
Todo o meu corpo começou a arder de repente como em uma
febre repentina.
Eu comecei a pensar na gravidade do ferimento. Talvez eu
tivesse sido infectado pela foice ou, até, envenenado. Mas aí eu levantei a
cabeça e descobri o que estava me fazendo mal.
Não era uma chama escarlate. Eram dezenas delas.
Para todos os lados que eu olhava, eu as via, lado a
lado. Eu estava completamente cercado por aquelas luzes.
Minha cabeça começou a girar. Eu senti que ia vomitar. Minhas
pernas tremeram e, antes que eu pudesse perceber, já estava caído sobre meus
joelhos.
Olhei para baixo. Respirei fundo. Várias vezes. Todo o
meu corpo ardia, tremia e doía. Minha visão começou a se tornar embaçada.
Não demorou muito para eu cair.
Apoiado sobre o lado direito de meu corpo, eu ainda podia
ver as luzes. Droga. Eu podia sentir as chamas escarlates me consumindo,
queimando minha pele, tirando minha visão, roubando a minha sanidade.
Então, de repente, aquilo acabou.
As luzes vermelhas se dissiparam em um instante. O ar
esfriou, tornando-se aconchegante.
Eu respirei fundo. Minha visão voltou, aos poucos, ao
normal. Minha cabeça não mais latejava. Rapidamente, olhei para o meu braço. Eu
quase não pude acreditar. Ele estava completamente curado. Não havia nem uma
cicatriz.
Enquanto eu me levantava lentamente, eu os ouvi. Passos.
Agora, não de um cavalo ou de qualquer outro animal. O som era de sapatos sobre
uma superfície lisa.
Eu tentei me levantar rapidamente e olhar na direção do
som. Infelizmente, apenas tive um vislumbre do homem. Tudo o que sei é que o
sujeito vestia um terno preto e, sobre o cabelo castanho escuro, havia uma
cartola da mesma cor das vestes dele.
Tive dificuldade para me ficar em pé. Respirei fundo.
Tentei ignorar a dor latejando que tomava conta de todo o meu corpo.
Respirei fundo. Em poucos instantes, eu estava mais
calmo. Assim, pude ouvir os passos.
Era aquele homem. Eu simplesmente tinha certeza daquilo.
E ele não estava muito longe.
Eu avancei o mais rápido possível que meu corpo dolorido
permitia. Passo a passo, eu me aproximava de onde ele estava.
—
Ei! — Gritei. Minha
garganta doía, mas tentei não me importar com aquilo. — Você! Pare!
Ele podia muito bem ser mais um dos monstros que
perambulava por Nightmareland. Em meio àquela névoa, e ainda por cima de
costas, não pude ver seu rosto. Mas eu tinha que me arriscar. Afinal, quando
ele apareceu, as chamas escarlates desapareceram. Ele me salvou até onde eu
entendia. Sem contar que eu ainda seguia pelo caminho asfaltado. Eu não havia
desviado de meu trajeto original.
—
Olá! — Tentei
chamá-lo novamente. —
Você poderia...?
—
Tente não fazer muito barulho aqui...
A voz calma veio do meu lado esquerdo.
Senti todos os pelos de meu corpo se arrepiarem. Logo em
seguida, voltei-me para o lado. Eu tinha que ver quem era.
Meus olhos se arregalaram. Novamente, pensei que eu iria
vomitar.
Eu mal podia dizer que aquilo era um homem. Seu rosto
estava completamente desfigurado. A pele parecia, ao mesmo tempo, derretida e
mastigada. Seu olho direito, bem como a cavidade que ele deveria estar, não
existia mais. Sua boca se estendia até a bochecha esquerda, que havia sido
cortada por algo. Além disso, a face dele não parecia...dele. Parecia que
alguém a havia arrancado de alguém e a colado lá.
A cena se tornava um pouco mais bizarra por causa de suas
vestes. Afinal, seu terno, sapatos e cartola, todos negros como piche, estavam
em perfeito estado.
Eu vi a boca do homem se movendo vagarosamente enquanto
ele dizia:
—
Por favor... Não perturbe o nosso sono.
De repente, a névoa começou a se dissipar.
Então, pude ver claramente o homem que eu seguia a minha
frente, bem como outros.
Agora eu estava cercado por dezenas de sujeitos vestindo
os mesmos trajes.
Entretanto, todos, com exceção do homem a minha esquerda,
escondiam o rosto com suas mãos.
—
Agora é tarde demais... —
O homem com o rosto deformado murmurou.
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ele fez algo
que eu nunca imaginaria.
Calmamente, ele levou ambas as mãos até a face retorcida.
Com os dedos acima dos olhos, ele riu. Vagarosamente, ele começou a puxar a
pele de seu rosto, rasgando-a.
De pouco em pouco, o homem dilacerou a própria face,
rompendo seus nervos e gritando de agonia a cada segundo.
Seu sangue
escorria por entre os dedos até suas mãos e, em seguida, pelo seu braço, entrando
por dentro de suas mangas.
Pequenos pedaços de sua carne praticamente apodrecida
caiam no chão.
Em poucos instantes, dois grandes pedaços de carne humana
estavam em suas mãos.
Sem hesitar, o homem derrubou sua face no chão. E foi aí
que eu percebi o que estava por de baixo de seu rosto.
Um rosto branco, sem brilho e sem expressão. Era quase
como o de um manequim. Isso é, se manequins estivessem cobertos de sangue.
Ouvi vários gritos a minha volta.
Todos tinham suas faces mutiladas, queimadas, marcadas
por cortes e, é claro, parecendo terem sido coladas em suas cabeças.
O homem ao meu lado riu loucamente. Eu me virei para
vê-lo, algo que eu me arrependi.
Seus olhos ganharam vida bem na minha frente.
Completamente brancos e sem brilho, porém, eles se moviam. E olhavam
diretamente para os meus olhos.
Eu estava paralisado de medo. E foi aí que sua boca se
moveu.
Revelando seus dentes metálicos que mais pareciam pregos,
ele disse:
—
Eu não queria ter de fazer isso, mas... —
A aberração suspirou. —
Você os acordou. E eles querem ver sangue.
Antes que eu pudesse perceber, seu indicador esquerdo já
tocava minha face.
—
Pelo menos eu vou conseguir um rosto novo. —
O monstro sorriu.
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