O Covarde
Eu ouvi a risada que há tempos eu não ouvia. Aquela que
parecia zombar de mim.
Então, tudo escureceu a minha volta por um instante. Meus
olhos haviam se fechado sem que eu quisesse.
Algum tempo se passou. Eu sentia como se eu houvesse
perdido os meus cinco segundos em um segundo.
Eu ouvi algo vindo. Era a maldita risada.
De pouco em pouco, ela se tornava mais alta e
insuportável. Mas aquilo era um bom sinal. Minha audição havia retornado. E
meus outros sentidos?
Um aroma fétido de algo em decomposição me atingiu.
O gosto de algo ferruginoso me veio à língua.
Senti o suor escorrendo por minhas mãos.
De repente, meus olhos voltaram a enxergar. Porém, tudo
estava estranho. Estranho até para os padrões de Nightmareland.
Isso por que eu não estava em outro lugar.
Eu sentia que eu estava correndo, mas a minha mente
parecia estar em outra realidade.
Como fotos de um álbum antigo, em preto e amarelo
desgastado (que era antes branco), as imagens surgiram em minha mente, ganhando
movimento lentamente.
Um homem e uma mulher corriam de um lado para o outro
juntos. As imagens não eram muito claras. Portanto, eu não conseguia distinguir
nenhum detalhe deles.
Novas imagens surgiram. O aparente casal estava sentado.
O homem sorria para mulher. E ela sorria de volta. Esse era o único detalhe que
eu podia ver. Os dentes brancos e perfeitos dos dois destoavam da confusão
amarelada e escura.
Mais uma seqüência de imagens me veio à mente. Agora, o
casal corria por uma floresta. Por entre as árvores, uma criatura surgiu. Seu
formato era indefinido. Era como um amontoado de sombras. Ferozmente, o monstro
avançava, mudando de forma a cada passo, transformando-se de um tigre para um
polvo, para depois se tornar um corvo gigantesco e, então, uma pessoa com
garras no lugar das mãos.
As imagens avançaram freneticamente, como se alguém
estivesse adiantando o filme para alguma cena em especial.
Em poucos instantes, as imagens voltaram a passar no
ritmo normal. O casal ainda corria pela floresta. Porém, no próximo segundo, a
mulher caiu. Ela havia tropeçado nas raízes de uma grande árvore.
O homem olhou para a aparente amada. O rosto dela se
tornava, aos poucos, mais nítido. Eu podia dizer que ela era bela e,
principalmente, que estava apavorada. Entretanto, aquilo não foi o suficiente
para comover o sujeito.
Ao ver a criatura a menos de um metro da mulher caída, o
homem deu as costas e continuou a correr.
Desespero tomou conta da mulher. O monstro se aproximou
calmamente dela. Antes que ela pudesse se levantar, a forma do monstro se
modificou. Seu braço se alongou e afinou, assumindo a forma do membro de um
louva-deus.
Com um golpe certeiro, o braço do monstro atravessou a
panturrilha da mulher. Ela parecia gritar, mas não havia som. Foi aí que tudo
piorou.
As imagens se tornaram mais nítidas. Cores surgiram,
dando vida àquela cena infeliz. Som, também, surgiu, deixando-me ainda mais
desconfortável.
Eu vi o delicado rosto alvo da mulher tomado por
desespero. Vi os seus lábios rosados se contorcendo em gritos agudos. Vi seus
olhos castanhos se fecharem enquanto lágrimas escorriam deles. Vi seu cabelo
longo e loiro se arrastando pelo chão de terra. Vi os membros do monstro
destroçarem os membros dela, rasgando sua pele, quebrando seus ossos, espalhando
suas entranhas e sangue pelo solo. Ouvi cada grito dela e cada grunhido do
monstro de sombras que a devorava lentamente, aproveitando a refeição. E,
principalmente, eu senti a tristeza da bela mulher que fora deixada sozinha
para morrer.
De repente, as imagens se desfizeram de minha mente aos
poucos, como se o filme do projetor tivesse sido queimado.
O mundo rodava ao meu redor. Minha cabeça doía. Meu
estômago ardia. Eu estava prestes a vomitar. Eric ainda me puxava. Minhas
pernas davam passos moles. Eu mal conseguia respirar. Foi aí que eu caí de
joelhos.
Eu senti meus joelhos se ralando contra os degraus de
pedra gelada. Eu me segurei para não vomitar. Comecei a respirar fundo,
freneticamente, sem me importar com o que estava acontecendo ao meu redor.
Por isso, eu demorei a perceber o que ele dizia:
—
Jack! Vamos! Agora!
Eric me estendeu a mão. Se não fossem pelas poucas
tochas, cujas chamas bruxuleavam, nas paredes daquela caverna, admito, eu não
conseguiria ver nada.
A expressão no rosto de Fields demonstrava sua
preocupação. Entretanto, eu não consegui ter uma reação muita amistosa. Com um
tapa, afastei a mão dele de mim. Enquanto ele olhava com um misto de confusão e
medo para mim, eu disse, irritado:
—
Pensei que estaríamos seguros lá.
Fields balançou a cabeça da esquerda para a direita,
lentamente, e então murmurou:
—
Você já deveria ter percebido, Jack...
—
Percebido? Percebido o que exatamente!?
—
Nada é muito certo em Nightmareland. —
Ele suspirou. —
Segurança... Isso é muito relativo. Se você pensar bem, estávamos cercados por
assombrações naquele prédio. Mas...
Ele simplesmente parou de falar. Seu olhar estava
perdido. Eu trinquei os dentes e gritei:
—
Mas o quê!? Vamos! Responda! Mas...
—
Não temos tempo a perder. —
Fields disse abruptamente. —
Vamos...
—
Não! — Esbravejei. — Você me deve respostas.
—
Agora não...
—
Você conhece aquela mulher!
Jack ficou paralisado. Eu suspirei.
As imagens voltavam a minha cabeça rapidamente. Dessa
vez, a cena do homem abandonando a mulher surgiu com cores e vida.
Agora, o rosto de Eric Fields era nítido na cena.
Eu cerrei os punhos, bufei e, enfim, consegui dizer:
—
Você a abandonou...
Eric continuava quieto. Porém, aquilo não me impediria de
continuar a dizer o que eu que dizer:
—
Você a abandonou! Você a deixou para morrer! Você...
—
Eu sou um covarde! —
Fields gritou. — Eu
sei disso! Você não acha que eu me sinto culpado por aquilo!?
Aquilo me silenciou. Porém, foram por apenas dois
segundos:
—
Você pede para que eu confie em você... —
Bufei. — Como? Como
eu posso saber que você não vai me trair quando eu mais precisar de sua ajuda?
—
Eu... Eu mudei. — Ele
balbuciou. —
Você...tem que acreditar em mim. Por favor...
Eu olhei fundo nos olhos de Eric. Neles, vi medo. Mas
também senti algo. Não sabia o que era, mas eu não me sentia confortável.
—Tenha
certeza que você não pode confiar nele...
Era uma voz feminina e delicada que havia dito aquelas
palavras. Ao ver Fields tremendo em minha frente, tive certeza de quem era
aquela voz.
Por entre as sombras, dos degraus que nós havíamos
descido, uma jovem e bela mulher surgiu. Seus longos cabelos loiros se moviam
delicadamente a cada passo que ela dava. Seus olhos castanhos brilhavam. Seus
lábios rosados eram encantadores. Seu rosto alvo pareci ter sido esculpido a
partir do mármore.
Pelo menos, até o instante seguinte.
Ela deu mais um passo. Sua pele se tornou cinza,
levemente esverdeada. Seu cabelo estava negro como piche, sem brilho,
escorrendo pelo rosto. O olho direito estava completamente branco. O esquerdo
havia sumido, bem como outras partes do corpo. A bochecha esquerda havia sido
arrancada, deixando aparecer parte da arcada dentária. Na simples blusa branca,
um buraco podia ser visto do lado direito de sua barriga, onde uma cavidade
completamente oca era bem nítida. A carne da coxa direita e da panturrilha esquerda
estava faltando. No lugar, marcas de mordidas gigantescas deixavam claro o que
havia acontecido.
Trincando os dentes, a mulher disse:
—
Isso terá um fim. Agora.
Ela não gritava. Porém, sua voz soava naturalmente como
um estrondo, como se várias vozes dissessem aquelas palavras simultaneamente.
Eric caiu de joelhos. Com a voz tremendo, ele perguntou:
—
Como... Como você chegou aqui...tão rápido?
Com um sorriso macabro no rosto, a mulher respondeu:
—
Um amigo me ajudou.
Assim que ela terminou de dizer aquelas palavras, aquela
risada soou novamente.
A princípio, eu achei que ela caçoava de mim. Mas, agora,
eu não tinha certeza de seu significado. Aquilo me deixava inquieto.
—
Hora de acabar com isso. —
A mulher disse abruptamente, interrompendo meus pensamentos. — Morra, Eric...
Fields se levantou rapidamente. Com as pernas tremendo,
ele se jogou para cima de mim. Com um movimento rápido, eu me livrei dele,
empurrando-o para trás.
Mesmo no chão, Eric conseguiu dizer, desesperado:
—
Por favor... Jack... Não me deixe morrer... Se você me ajudar... Eu...eu...
Eu tinha que pensar no que eu faria. Fields era um
desgraçado que merecia morrer? Eu tinha quase certeza disso. Mas, o que
aconteceria comigo? A última coisa que eu precisava naquele lugar infernal era
a minha consciência me atormentando.
Eu cerrei as mãos e bufei. Então, fiz aquilo que eu tinha
que fazer, sem saber das terríveis consequências que viriam mais tarde.
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