Damian
No
céu noturno, a lua reinava. Naquela singela vila de menos de cem habitantes, o
silêncio era absoluto. Apesar de muito simples, a igreja da cidade era motivo
de orgulho para os moradores de lá. A edificação, apesar de velha, era muito
bem conservada. As pessoas juravam que, algumas vezes ao ano, as pedras
cinzentas que compunham a igreja e a praça a sua frente, cujo chafariz cor de
alabastro despejava água cristalina delicadamente, chegavam a brilhar como
prata. Entretanto, o cenário se encontrava radicalmente diferente desta vez.
Dezenas
de corpos estirados marcavam a paisagem agora. O piso de pedras estava
destruído. Partes do chão pareciam haver sido arrancadas violentamente, revelando
o terreno lamacento que lá havia. Litros de sangue haviam colorido as pedras
cinzentas. O mesmo se aplicava à cor do chafariz, bem como à sua água. A peça
cor de alabastro, agora carmim, jorrava não mais um líquido cristalino. As próprias
paredes da igreja haviam sido tingidas, levemente, com respingos vermelhos. Também
havia cortes marcados nas pedras. Ao que tudo indicava, uma arma conseguiu
cortar, sem esforço, através das pedras.
Em
meio aos corpos sem vida, havia alguém de pé. Com um metro e oitenta e cinco de
altura, o homem estava apenas parado. Parecendo estar perdido em seus
pensamentos, levemente, ele ofegava. Sua armadura, sem elmo, era bem simples.
Entretanto, ela parecia ser bem resistente e não muito pesada. Ela poderia
oferecer certa proteção durante combates sem prejudicar muito sua agilidade. No
momento, a superfície de aço cinza escuro estava marcado por dezenas de cortes
e manchas de sangue.
Na
mão direita
A
idade daquele homem não era fácil de se deduzir por sua aparência. Seu cabelo
castanho escuro era levemente espetado. Seus olhos verdes escuros, sem brilho
algum, pareciam determinados. A expressão em seu rosto esguio e belo,
entretanto, revelava a sua exaustão e, talvez, certa tristeza. Estranhamente, o
guerreiro não tinha um ferimento sequer em sua face.
O
passado dele estava envolto em escuridão. Toda a sua vida trágica era prova
disso. A espada que ele carregava em sua mão direita também poderia contar
histórias.
Passos
puderam, de repente, ser ouvidos. O guerreiro olhou na direção de onde eles
vinham. Assim, ele viu quem se aproximava. Um sujeito, que não devia ter mais
de vinte e cinco anos de idade, parou de andar. Obviamente, isso só aconteceu
porque o guerreiro olhou na direção dele. O sujeito, por um instante, pareceu
ter sido paralisado.
O
guerreiro fitou o desconhecido. Apenas pelo equipamento que o desconhecido
carregava, ele pôde descobrir seu estilo de luta. Nada muito difícil para
alguém experiente como aquele guerreiro.
Os
trajes eram feitos de couro. A coloração era preta para as calças. No caso das botas,
couraça e braceletes, a cor era bege. Estas eram reforçadas com aço prateado.
Os braços eram praticamente desprotegidos, porém, essa era a intenção. Quanto
menos peso nos braços, mas rapidamente ele poderia atacar com as armas que ele
carregava atrás da cintura. As duas espadas eram idênticas. Ambas tinham pouco
mais de um metro de comprimento. As lâminas eram da cor da prata enquanto os
punhos, adornados com a imagem de uma ave, eram dourados.
Após
um segundo, porém, ele parecia haver se recuperado. Seu cabelo castanho claro,
apesar de sedoso, estava completamente bagunçado. Seus olhos cor de mel
pareciam brilhar de empolgação. Ele sorriu, exibindo seus dentes brancos como
pérolas, e conseguiu dizer:
—
Então tudo o que eu ouvi falar sobre você é verdade...
A distância entre os dois era inferior a dez metros. O
guerreiro podia ouvir claramente o que foi dito por aquele homem. Entretanto, não
houve resposta. Claramente, o guerreiro havia ignorado o que o desconhecido
havia dito.
Entretanto, o homem não se desanimou e, assim, gritou,
acenando com a mão direita:
—
Você! Guerreiro! Aqui!
Parecendo desinteressado, o guerreiro se virou de costas
e começou a andar para longe do desconhecido. Apesar de um pouco irritado, o
homem não desistiu. Logo, ele chamou o guerreiro pelo nome:
—
Damian!
No mesmo instante, o guerreiro se voltou para o
desconhecido. O homem que trajava a armadura de couro sorriu satisfeito e,
então, disse:
—
Por um instante, cheguei a pensar que você era surdo.
Damian olhou friamente para o homem. Após alguns
instantes, ele resolveu perguntar para o desconhecido:
—
O que você quer?
—
Ora... — O homem sorriu
calorosamente. —
Primeiro, deixe-me apresentar. —
Ele fez uma reverência. —
Johan Carmesí, ao seu dispor.
Damian encarou Johan. O homem sorria para o guerreiro.
Pensativo, Damian tentava lembrar-se de onde havia ouvido o nome de seu
interlocutor. Após alguns instantes, então, o guerreiro perguntou:
—
Você é membro da gangue Carmesí?
—
Sim. — Johan
respondeu contente. —
Já ouviu falar de nós, pelo visto.
—
Não muito. Apenas sei que vocês têm uma guilda de ladrões bem poderosa.
—
Resumindo o máximo possível, é bem isso mesmo.
—
Certo... O que você quer comigo então?
—
Sua ajuda, é claro.
—
Para roubar algo?
—
Sim.
—
Esse não é o meu ramo.
—
Não. Matar é o seu ramo. E é por isso que eu preciso da sua ajuda, caro Damian.
Friamente, o guerreiro encarou Johan. O sorriso caloroso
do ladrão foi, ao poucos, desaparecendo. Após engolir em seco, Johan perguntou:
—
Eu disse algo inapropriado?
—
Não aja como se eu matasse por gosto, ladrão.
—
Ah...certo. — Johan
parecia ligeiramente constrangido. Então, tomado por uma certa dúvida, ele teve
de perguntar. —
Então...por que você mata tanto e, sejamos sincero, tão bem?
Damian ergueu sua espada além de sua cabeça. A luz do
luar iluminou a arma. Johan apenas observava. A espada era, sem dúvida, única.
A arma tinha um metro e setenta de comprimento. Apesar de parecer ser pesada, o
fato de Damian poder carregá-la com apenas uma mão negava tal afirmação. A
coloração negra sem brilho fazia com que boa parte da arma fosse feita de
carvão. O aspecto, no geral, grosseiro da arma reforçava tal ideia. Entretanto,
a lâmina era a parte mais chamativa da arma. Isso se tornava óbvio assim que
alguém a olhasse. O metal escarlate da lâmina brilhava intensamente, quase como
se ela emanasse calor. Ao mesmo tempo, ela era quase hipnótica. Os movimentos
leves que Damian fazia com a espada pareciam fazer Johan parar de pensar e se
mover.
Então, o guerreiro quebrou o silêncio:
—
É por causa dessa espada. Aliás, é por causa de quem forjou essa espada.
—
Ah... — Johan encarou
a resposta de Damian como um enigma. Assim sendo, ele deu de ombros, parecendo
confuso. — Certo...
—
Eu vou matar aquele quem forjou essa espada. E eu vou fazer isso com essa arma.
O guerreiro soou profundamente determinado com aquelas
palavras. Johan não duvidaria que Damian fosse, de fato, matar alguém com
aquela espada.
Porém, o ladrão ainda não sabia a motivação de Damian.
Isso o intrigava. Por isso, o ladrão perguntou:
—
E o que o ferreiro que fez sua espada fez para merecer morrer?
Damian fitou o rosto de Johan e bufou. Após um segundo,
ele respondeu:
—
Nenhum ferreiro conseguiria criar uma arma como essa. Nenhum mortal teria as
habilidades necessárias ou a coragem de criar um instrumento de destruição como
este que eu carrego. —
Ele apertou o punho da espada e cerrou os dentes. — Apenas um demônio poderia dar vida a uma
atrocidade dessas.
Johan encarou Damian pensativo por alguns instantes. Por
fim, o ladrão conseguiu abrir um sorriso e dizer:
—
Então você quer matar um demônio. Essa é a sua motivação para matar?
—
Você não sabe o que o desgraçado fez. —
Disse, rispidamente, Damian.
—
Você quer me contar o que ele fez?
—
Eu prefiro não ter que fazer isso.
—
Ótimo. — Johan
sorriu. — Sem
problemas. Aliás, talvez seja melhor assim.
—
Bom...
—
Agora, permita-me contar como eu posso te ajudar.
—
Dispenso.
—
Sério? Eu estou lhe oferecendo minha ajuda para que você possa me ajudar
depois. Assim, ficaremos quites.
—
Eu não me interesso em ajudar você. Assim, você também não precisa se
interessar em me ajudar.
—
Justo... — O ladrão
admitiu desanimado. —
Porém, pelo que eu entendi, você está caçando esse demônio, matando todos os
que se opõe a você. E, pelo visto, você não tem nenhuma pista para alcançar o
seu alvo. Estou certo?
Damian não respondeu. Entretanto, ele não ameaçou ir
embora. Johan sorriu. Ele sabia que estava certo. Assim, o ladrão continuou a
falar:
—
Quanto mais pessoas você mata, maior a recompensa pela sua cabeça se torna.
Assim, emboscadas como essa, nesta singela vila, tornam-se mais e mais freqüentes.
Enquanto isso, esse demônio está caminhando alegremente pelo nosso mundo. Ele
pode estar, inclusive, manipulando pessoas para o ajudarem. Ah...talvez ele
esteja disfarçado como alguém neste exato momento. Já imaginou? Um nobre
protegido por um exército particular. Seria uma boa alternativa tanto para se
esconder de você tanto para manipular pessoas.
—
E o que você pode fazer? —
Indagou Damian grosseiramente.
—
Ora... — O ladrão
sorriu contente. —
Talvez eu, ou alguém da minha guilda, possa te ajudar.
—
Como vocês fariam isso?
—
Nós temos os nossos truques e contatos.
—
Claro...
—
Imagino que isso não seja o suficiente para te convencer. Porém, peço que pense
no seguinte: como eu te encontrei? Aliás, como qualquer um dos mercenários que
você matou te encontrou? Como uma emboscada pôde ser armada em uma vila como
essa?
Damian olhou diretamente nos olhos de Johan. O ladrão
sorria tranquilamente. Então, o guerreiro disse:
—
Toda essa emboscada...foi culpa sua?
—
Sim. — Johan
respondeu com simplicidade. —
Foi um teste para as minhas habilidades...e para as suas também. — Ele focou seu olhar na
destruição causada pelo guerreiro. —
E, humildemente, devo dizer que nós fomos muito bem.
Damian esboçou um sorriso. Calmamente, ele disse:
—
Bem, você conseguiu minha atenção.
—
Ótimo. — Sorriu Johan
e, tranquilamente, foi andando em direção ao guerreiro. — Agora, temos que falar sobre algumas coisas.
Sabe? Eu tenho que te ajudar... Você tem que me ajudar...
—
Claro. Mas, antes, tenho que te apresentar alguém.
Johan pareceu confuso. Damian teria algum aliado que suas
conexões não haviam descoberto? Era improvável. Entretanto, o ladrão teve que
perguntar:
—
E quem seria esse?
Damian estendeu sua espada na direção de Johan. A lâmina
estava a poucos centímetros de seu pescoço. Antes que o ladrão pudesse
protestar, o guerreiro disse:
—
Este é Sebastian.
Johan demorou alguns instantes para entender.
Aparentemente, aquele era o nome que Damian deu à espada. Então, o ladrão
disse, hesitante:
—
Ah...prazer, Sebastian...
—
Foi ele quem me treinou. —
Explicou Damian. —
Foi ele quem me acolheu. Ele foi...minha família, por um bom tempo.
Johan estava claramente confuso. No momento, ele estava
duvidando da sanidade mental de Damian. Entretanto, o guerreiro percebeu a
expressão no rosto do ladrão. Por isso, Damian esclareceu:
—
Sabastian me acolheu depois que meus pais morreram. Culpa desta guerra maldita.
Enfim, ele me treinou para ser o melhor soldado possível. Entretanto, ele foi
morto... Morto pelo demônio que eu caço. —
O guerreiro cerrou os punhos. —
Aquele monstro...nos enganou. No final, ele usou o Sebastian... A carne, os
ossos, o sangue e a alma daquele que se tornou meu pai...agora constituem essa
espada sanguinária.
Johan olhou abismado para Damian e, principalmente, para
a espada que ele carregava em sua mão direita. Com o rosto claramente tomado
pela raiva que as memórias traziam, Damian continuou a falar:
—
Aquele demônio esperava que eu espalhasse o caos pelo mundo, derramando o
máximo de sangue possível. —
Ele sorriu sombrio. —
“Que a vontade dela seja feita. Sangue será jorrado pela minha espada. E o
daquele demônio não será exceção”. Esse é o pensamento que me guia desde aquele
dia...
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