A Origem da Voz
Escuridão. Nada além disso. Pelo menos, escuridão era
tudo o que existia a minha frente.
O pouco de luz que havia naquele corredor vinha de trás
de mim. Com alguns passos para trás, eu estaria de volta ao lugar que eu achava
seguro. Entretanto, eu conseguia manter a minha cabeça no lugar, pelo menos,
naquele instante. Segurança era apenas uma ilusão, obra do demônio que me
colocou lá. Eu sabia que não poderia baixar a guarda.
A voz soou de novo. Dessa vez, mais alta e, também,
ecoando por todo o corredor.
Aquilo foi inesperadamente bom. Com isso, digo que foi
útil. Eu estava começando a me perder em meus pensamentos. E eu sabia que, se
eu fosse morrer naquele lugar, seria por algum descuido meu. Por isso, em meio
às trevas, eu continuei caminhando. Foi aí que eu ouvi.
Um som alto, como um trovão, soou atrás de mim.
Abruptamente, eu me virei para trás.
A passagem havia sido fechada. Alguém, ou algo, a havia
fechado, batendo a porta com força além do necessário. Com isso, eu estava,
agora, completamente imerso nas trevas.
A voz voltou a falar algo. Não sabia, ainda, o que dizia.
Além disso, eu nem sabia de onde ela vinha. De dentro do corredor, o som
parecia vir de todos os lados, ecoando por o que parecia ser uma eternidade.
Tentei me manter calmo. Toquei a parede que estava à
minha esquerda. Em seguida, fiz o mesmo com a direita. Elas continuavam lá. Por
isso, o meu caminho continuava o mesmo: seguir, reto, o corredor.
Sussurrando trechos de músicas, assoviando e até
estralando os dedos, eu continuava a andar.
Cinco minutos? Talvez dez? Talvez apenas dois? Quem sabe
uma hora? Eu não sabia quanto tempo havia se passado. E eu não queria saber se
para isso eu tivesse que pensar. Enquanto minhas pernas não estivessem
latejando de dor, eu continuaria em frente.
Em intervalos completamente irregulares, a voz falava
algo. Às vezes se passavam não mais do que dez segundos. Noutras, passavam-se o
que eu sentia ser minutos. Porém, pude chegar a uma conclusão: eu nunca entenderia
o que a voz falava.
Não importava o quanto eu me aproximasse ou o quanto eu
estivesse atento, as palavras ditas por ele, ou ela, eram totalmente
incompreensíveis para mim. Isso por que elas estavam sendo ditas em uma língua
que eu não conhecia.
Apesar de eu nem saber que idioma era aquele, eu ouvi
vezes o suficiente aquela frase para saber pronunciá-la.
Era estranho, porém, prazeroso. Seja o que for que eu
estava falando, soava bem. Era como cantar uma música de uma banda estrangeira
na língua deles. Não fazia sentido, mas era simplesmente uma ótima sensação.
De repente, a voz gritou. Eram as mesmas palavras
desconhecidas, mas a entonação era completamente diferente. Eu podia sentir o
desespero na voz.
Uma. Duas. Três vezes. E não parava. A voz gritava com
toda a força. Apenas a lembrança daquele som agudo me gela a espinha. Isso por
que...por que foi aí que eu percebi que aqueles gritos desesperados pertenciam
a uma criança de não mais de cinco anos idade.
Eu comecei a correr. A situação era inquietante além do
imaginável. Todo aquele tempo que eu ouvi a voz...era uma criança sofrendo.
A cada passada que eu dava, eu pensava mais na história
daquela mãe desnaturada e de seu filho não amado. Muita coisa não estava clara.
Eu não sabia se ficava feliz ou não com isso. Mas eu tinha certeza que a
história não teve um final feliz. Não era preciso ser nenhum tipo de adivinho
para se chegar a tal conclusão.
Enquanto corria, comecei a achar que estava
enlouquecendo. As paredes pareciam estar mudando de cor. Alias, não só elas.
Todo o lugar parecia se transformar em uma fração de segundos e, com a mesma
facilidade, voltava a ser o corredor imerso nas trevas.
Aquilo estava me deixando um pouco enjoada. Porém, eu
continuava correndo.
Mas não demorou muito para eu perceber. Toda
transformação conseguia se manter por alguns instantes a mais que a anterior.
Assim, fui percebendo o novo cenário.
Paredes verdes e decrépitas. Luzes amarelas e fracas
vindas do teto. Chão de madeira que rangia a cada passo que eu dava. Escuridão
à distância. Droga... Foi aí que eu percebei que o novo cenário era, na
verdade, o velho cenário: eu estava de volta ao mesmo corredor que estava
quando saí do quarto branco.
Eu nem havia percebido, mas eu havia hesitado. Com isso,
digo que eu havia não só parado de correr, como também parado de me mover. Logo
em seguida, senti algo gelado tocar as minhas costas.
O frio tomou conta de meu corpo. Minha mente parou de
funcionar naquele instante. Meu medo de me virar para trás e ver o que estava
lá era grande demais. Entretanto, eu não tive que me mover. Algo passou por
entre as minhas pernas. Senti todos os pelos de meu corpo se arrepiarem. Quando
olhei para baixo, porém, nada havia lá...a não ser mais uma carta luminescente.
Como eu esperava, era mais uma mensagem do demônio.
“Você não devia ter parado...”.
Era difícil ler sob aquela luz fraca. Inconscientemente,
eu balbuciei as palavras que estavam escritas no papel.
“Você...não...devia...ter...”.
Eu havia lido a última palavra, mas não a havia
balbuciado. Algo acabou me impedindo.
Enquanto eu olhava para a carta, uma mão surgiu das
trevas, agarrando o meu pescoço e me erguendo no ar. Então, eu o vi.
Em meio às trevas, o monstro surgiu, aos poucos, bem na
minha frente.
Aquilo parecia uma pessoa, mas, tenho certeza de que não
era. O corpo
era musculoso, porém, esguio. Ele devia ter quase dois metros de altura. A
pele era negra como carvão, sem brilho algum. Sua cabeça era um oval, lisa. O
monstro não tinha cabelo, nem orelhas, nem nariz. Os olhos dele eram
apenas círculos brancos que brilhavam intensamente. A boca
era apenas um buraco largo e assimétrico na cabeça do monstro. Os dentes,
contorcidos em um sorriso macabro, eram quadrados irregulares também feitos do
que me parecia ser carvão.
A mão dele continuava a apertar o meu pescoço. Cheguei a
pensar que ele o monstro o quebraria. Porém, enquanto o meu ar acaba e minha
visão se embaçava, percebi que a criatura tinha optado por uma maneira mais
lenta de me matar.
Foi aí que eu ouvi o som de algo se quebrando. Foram as
lâmpadas do teto.
Em um instante, o monstro desapareceu. Eu caí de joelhos
no chão. Eu respirava desesperadamente para recuperar o ar. Levei minha mão
esquerda ao meu pescoço. Eu o sentia latejar. Por pouco, eu não havia
morrido.
Envolto pela escuridão, e agora sem um monstro tentando
me matar com um sorriso no rosto, eu vi de volta ao breu.
Porém, no mesmo instante em que eu havia pensado nisso,
uma pequena luz brilhou, poucos metros a minha frente.
Lentamente, quase me arrastando, eu fui até o que eu
tinha certeza que era mais uma mensagem do demônio.
Ao chegar lá, vi que eu estava certo. Agora, havia uma
porta bem na minha frente com uma carta pregada nela.
“Você devia ter visto a sua cara! Hahahaha!”.
Ótimo. O Demônio estava tirando sarro de mim.
De repente, algo passou pela fresta da porta. Aos meus
pés, estava mais uma carta luminescente. Nela, nada havia além de uma foto
minha. O pavor estava estampado em meu rosto. O suor escorria pela minha face.
Minha cara se contorcia de dor enquanto eu era estrangulado por uma mão negra
como carvão.
Enquanto eu sentia o meu corpo tremer, outra carta passou
por debaixo da porta.
“Hahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahaha!”
Isso estava escrita em letras exageradamente grandes.
Claramente, o demônio estava gostando de ver o meu sofrimento.
Eu amassei a última carta e a joguei para trás. Rapidamente,
tentei girar a maçaneta da porta. O ato fora em vão. Ela estava trancada. Furiosamente,
comecei a bater na porta. Outra ação minha em vão. Quando percebi, minhas mãos
estavam rubras, a ponto de começarem a sangrar.
Eu respirei fundo, exalando lentamente, tentando me
acalmar. Repeti o ato algumas vezes.
Quando eu consegui voltar a pensar, ouvi o som de outra
carta passando por debaixo da porta.
“Agora que você está mais calminho, eu vou abrir a porta.
Quando você entrar nessa sala, procura a lâmpada. Não é difícil, viu?”.
Resolvi manter aquilo em mente. Após eu ouvir o som da
porta se destrancando pelo lado de dentro, eu girei a maçaneta. A porta se
abriu.
Mais trevas estavam a minha frente. Eu já estava me
acostumando com aquilo. Por isso, não hesitei ao entrar na sala.
Não havia nada de especial lá. O ambiente era
ligeiramente mais frio e úmido. Porém, eu ainda tinha em mente o que o demônio
me contou na última carta.
Após dois passos dados para frente, eu senti que eu havia
batido a cabeça em algo. Calmamente, eu envolvi aquilo com minha mão direita. O
objeto era leve, frio e longo: uma pequena corda de metal.
A lâmpada. Aquilo deveria acender-la. Com isso em mente,
puxei a corrente.
O ambiente a minha volta era desconcertante. O chão e o
teto eram cinzentos. As paredes eram de pedra, também cinzas. Nelas, entretanto,
estava o motivo de minha inquietação.
Palavras em algum idioma estranho estavam escritas nessas
paredes. Alguém as havia escrito com várias cores diferentes. Todas as letras
haviam sido escritas de um jeito preguiçoso, arrastado. Além disso, haviam
algumas marcas de unhas nas superfícies rochosas.
Foi então que eu ouvi um estrondo como o de um trovão
novamente. Eu não precisava me virar para saber que a porta atrás de mim havia
se fechado.
Calmamente, eu me voltei para trás. Olhei para a porta
que, agora, percebi ser de metal. Nela, havia uma carta branca que brilhava,
bem como, perturbadoramente, mais marcas de unhas.
“Resolvi te contar como a história termina! Então, lembra
que a mãe falou que não ia matar o filho? Então... Hahahahaha! Ela resolveu
trancar o moleque neste quarto! Ela fazia isso sempre que ela sentia vontade!
Haha! Só que tem um problema! Um dia, ela teve que sair de casa! Não me lembro
o que ela foi comprar...mas isso não importa! O que importa é que ela acabou
sendo atropelada! Haha!”.
O desfecho da história é, no mínimo, inquietante.
“E o moleque? Ele acabou ficando preso nesse quarto! Sem
nada pra comer ou beber! Só foram achar o corpo dele muito tempo depois! No
tempo que ele ficou aqui, ele tentou escapar cavando com as próprias mãos! Que
idiota! Mas não antes de ele escrever com os gizes de cor nas paredes! Sabe o
que elas dizem? É claro que não! Mas não se preocupe! Eu traduzo!”.
Abismado, eu li:
“Eu prometo que vou me comportar, mamãe! Deixe-me sair,
por favor!”.
Para finalizar, eu tremi enquanto lia o fim da carta.
“E foi exatamente isso o que você estava ouvindo o fantasma
do menino gritar esse tempo todo! Haha!”.
Eu gostaria de dizer que eu estava paralisado de medo,
mas a verdade era que eu estava tremendo como nunca antes.
Eu tentei respirar fundo. Eu tinha que me acalmar. Mas eu
não consegui. Mais uma vez, eu ouvi a voz. Desta vez, ainda mais próxima e,
também, eu pude entender o que ela disse:
—
Eu prometo que vou me comportar, mamãe! Deixe-me sair, por favor! — O menino fez uma breve
pausa e, então, disse algo novo enquanto senti algo gelado tocando a parte de
trás de minha perna esquerda. —
Que bom que eu não estou sozinho agora...
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