O Rato
Cinco dias já haviam se passado. E eu...estava me
acostumando com aquilo. O ambiente já não me deixava mais inquieto como antes.
A companhia de Brad, Emmanuelle e Jerome chegou a se tornar aconchegante. Eu...realmente
podia confiar neles. Eu tinha certeza disso agora.
Quanto à luta com facas...eu estava aprendendo tudo com
muita facilidade. Minha agilidade e precisão nos golpes surpreenderam até mesmo
Jerome. De acordo com ele, bem como Brad e Emmanuelle, eu tenho algum histórico
com artes marciais. Aparentemente, essa é apenas uma das várias coisas que eu não
sabia sobre mim mesmo.
Enfim, eu ainda não havia participado de nenhuma missão
para conseguir suprimentos. Eu devo admitir que eu estava ansioso para a
ocasião, mas eu também tinha noção da minha falta de experiência. Eu teria que
acompanhar um de meus aliados algumas vezes em tais missões antes de eu poder
fazer esse tipo de coisa sozinho.
Porém, essa noite vai ser a primeira vez que eu fico de
vigia. Eu estava um pouco nervoso, é claro, mas também estava animado, o q eu era
bom, considerando que eu tinha que passar parte da noite acordado, com os olhos
bem abertos.
Eu olhava para frente. Da onde eu estava, eu via apenas
duas passagens possíveis para alguém chegar até mim. Ao nordeste, um corredor
rochoso, de mais de cem metros de comprimento, seguia ligeiramente para o alto.
Ao noroeste, um corredor, praticamente idêntico ao outro, seguia, íngreme, para
baixo.
Eu olhei para trás por um instante. Brad, Emmanuelle e
Jerome. Os três dormiam tranquilamente nos sacos de dormir de couro. Aquilo
realmente me fez me sentir bem. Eles não estariam dormindo tão tranquilamente
assim se não confiassem em mim, certo?
Tal pensamento me trouxe um sorriso no rosto.
Rapidamente, voltei a olhar para frente. Eu tinha que me manter vigilante.
Nada. Não havia nada a minha frente. Ambos os corredores
continuavam vazios. Aparentemente, a área onde estávamos era mais afastada da
carnificina. Se fosse estivesse acompanhado de um grupo relativamente numeroso
ou forte, você estaria seguro. Acontecia uma espécie de trégua entre os bandos
da região. É claro que, caso você entre nessa área sem um grupo bom o
suficiente...você acabava morto. Um destino terrível para os desavisados, mas,
para os grupos que já estavam aqui, era um jeito fácil de conseguir mantimentos.
Entretanto, eu ainda não tinha visto com os meus próprios
olhos como aquilo acontecia. Eu me refiro aos mantimentos. Pelo o que o resto
do grupo me contou, existem algumas passagens de acesso a essa local. Entretanto,
elas são muito bem protegidas. São grandes portões de aço espessos que abrem
apenas quando chegam novos participantes do reality ou quando descarregam
mantimentos.
Independentemente do motivo, quando os portões são
abertos, eles aparecem. Apelidados de Capatazes, esses guardas podem matar
qualquer um daqui facilmente no caso de algum tipo de rebelião ou tentativa de
fuga, o que, de acordo com Jerome, já foi tentado antes. Não houve sucesso em
nenhuma tentativa. Isso por causa do armamento deles.
Protegidos por o que mais parecem ser armaduras de aço,
os Capatazes, que sempre são muito altos e fortes, ainda carregam armas pesadas
como metralhadoras, lança mísseis, lança granadas ou lança chamas. Partir para
cima deles com facas não é uma boa opção.
Enfim, no caso dos mantimentos, os Capatazes apenas
aparecem para proteger algum outro funcionário que transporta os caixotes. Com
o trabalho deles concluído, todos retornam pela passagem. Já que os portões
permanecem abertos durante a descarga dos mantimentos, algumas pessoas tiveram
a idéia de tentarem escapar durante esse instante. Até Brad e Emmanuelle já
viram algumas tentativas do tipo. Nenhuma deu certo.
Quanto a chegada dos novos participantes, os Capatazes o
protegem...temporariamente. Matar alguém que acabou de entrar no Matadouro é
muito fácil. A vítima está confusa e assustada. E é por isso que os Capatazes
os protegem. Assim, os novos participantes tem tempo de entender o que está
acontecendo...na maioria das vezes. É claro que muitos morrem pouco tempo
depois de entrarem, mas sempre existem aqueles que conseguem formar alianças
com outros grupos ou, até, formarem alianças, temporárias ou não, com os outros
novos participantes.
Comigo a situação foi um pouco diferente. Eu...estava
desacordado quando eu cheguei. Algo, que acabou me causando amnésia, já tinha
acontecido. Logo, naquele estado, eu seria deixado para morrer. Os outros
novatos já haviam me abandonado. Após algum tempo, os Capatazes fizeram o
mesmo. E eu teria sido morto...se não fosse por Brad e Emmanuelle.
Outros participantes já iam se aproximando de mim. Eles
me matariam e, rapidamente, teriam um caixote de suprimentos frescos. Mas Brad
já havia bolado um plano. Logicamente, os participantes que queiram me matar,
que eram três no total, estavam com a guarda baixa. Brad e Emmanuelle, que
estavam em um plano elevado em relação a eles, conseguiram realizar um ataque
surpresa, matando o trio sem dificuldade. Motivados pela curiosidade, eles me
acolheram e, agora, juntamente com Jerome, eles estão me ajudando.
Eu ainda não sei, em detalhes, o que aconteceu com
Jerome, Emmanuelle e Brad nesses anos todos, mas, por algum motivo, eu sentia
que descobriria com o tempo.
Enfim...eu já não tinha mais noção de que horas eram
naquele instante. Tudo estava calmo demais. Minhas pálpebras pesavam. Eu
começava a bocejar. Daquele jeito, eu acabaria dormindo em poucos segundos.
—
Então você é o protegido deles? —
Perguntou uma voz desconhecida.
Eu levei um susto. A voz vinha logo acima de mim. Eu
levantei rapidamente a minha cabeça e me virei para trás. Então, eu o vi. Um
homem com um pouco mais de um metro e setenta de altura se segurava na parede logo
acima da entrada do esconderijo. Ele era extremamente magro. Seu rosto pálido
era enegrecido por marcas de sujeira e um cavanhaque espesso. O nariz era
pontiagudo e, os olhos, cinzentos. Seus cabelos castanhos escuros eram formados
por dreadlocks. Suas vestes, uma camiseta de mangas compridas e as calças, eram
feitas de linho. Talvez a cor original fosse branca, mas, agora, desgastadas,
elas eram amareladas cheias de rasgos. Por cima da camiseta, ele trajava uma
jaqueta de couro negra sem mangas. Seus pés estavam descalços.
—
Já que você não responde, vou presumir que sim. —
Ele afirmou.
Eu aproximei minha mão direita do bolso de minha calça
jeans. Minha faca estava lá. Infelizmente, o desconhecido percebeu o meu gesto.
Rapidamente, ele se lançou da parede, pousando logo atrás de mim. Antes que eu
pudesse me virar, uma lâmina já estava próxima a minha garganta. Eu olhei para
baixo. Não importava que o estilete estivesse meio enferrujado. Era bem
provável que aquilo pudesse me matar.
—
Que tal você começar a me responder algumas perguntas, hein? — Ele propôs.
Eu
trinquei os dentes. Eu não sei quem ele era, mas ele conseguiu me surpreender.
Após alguns instantes, eu suspirei e perguntei:
— O que você
quer comigo?
— Apenas estou
curioso sobre você. — O homem disse
calmamente. — Garoto...você
é especial. Por algum motivo. E eu quero saber o porquê.
O
cheiro dele já estava me dando náuseas depois daqueles poucos segundos. É óbvio
que não era possível ser muito higiênico no Matadouro, mas...droga. Aquele
homem parecia não tomar um banho a nos e comer apenas carniça. Ao olhar mais
calmamente para a mão que estava quase na minha garganta, notei suas unhas.
Elas eram amareladas e aterrorizantemente longas, assemelhando-se a garras.
Tentando respirar o mínimo possível perto dele, eu, enfim, consegui dizer:
— Imagino que
você conheça algum dos três.
— Ah...sim. — Ele riu baixo. — O grande Jerome...a bela Emmanuelle...e o
desgraçado do Brad. Conheço eles, sim.
— Por que tanta
raiva do Brad?
— Algumas
desavenças. Algumas situações que ele me passou a perna. Tanto aqui, no
Matadouro, tanto lá fora, quando éramos apenas criminosos comuns. Longa
história...
— Entendo...
Abruptamente,
ele aproximou o estilete ainda mais perto de minha garganta. O homem bufava
irritado agora. Tentando manter a calma, eu abri a boca para perguntar se ele
estava bem, quando ele gritou:
— Pare de se
fazer de esperto! Tentando ganhar tempo!
— Eu não estava
tentando fazer isso. — Eu disse. Bem,
em parte era verdade, mas eu também estava intrigado sobre aquele homem.
— Me diga logo o
que eu quero saber!
— E o que você
quer saber?
— É... — Disse Brad calmamente. Ele havia acabado de
se aproximar de nós e apontava o revólver na direção do rosto do homem com
dreadlocks. — O que você
quer saber, Trent?
O homem
bufou, pressionando a lâmina contra o meu pescoço. Então, Trent disse:
— Ora...nada de
mais. Acho que você deve saber o que, não é, Brad?
Ele
sorriu e então perguntou
— O que você
acha ser mais provável, Trent? Eu te contar tudo o que eu sei sobre o moleque
ou eu atirar na sua cabeça?
— Quanta
agressividade... — Trent bufou.
Então, ele passou as unhas da mão esquerda em meu rosto e perguntou. — Você realmente quer ver esse menino tão
jovem e cheio de vida morrer bem na sua frente?
— Mate-o, se
quiser. Eu já sei tudo o que eu queria saber sobre ele. Agora, ele é só mais um
no meu grupo. Não é nada de especial.
De
repente, a lâmina se afastou do meu pescoço. Trent apontou a lâmina na direção
de Brad. Sua mão esquerda apertava o meu ombro. Então, ele bradou:
— Você é um
verme, Brad! E você sabe muito bem disso! Você descarta as pessoas como se
fossem lixo! Você...
Eu
não o deixei terminar de falar. Trent abriu uma brecha grande o suficiente para
eu me soltar e, ao levantar o meu cotovelo direito, acertei em cheio seu nariz,
derrubando-o para trás. Brad, com um passo largo, posicionou-se ao meu lado e,
com o revólver, apontou na direção de Trent. O homem com dreadlocks se levantou
e, ao ver a situação em que ele estava, cuspiu no chão e trincou os dentes.
Sorrindo, Brad disse:
— Você sabe que
eu não quero gastar essa bala com um verme como você, Trent. E eu sei que,
antes que eu possa me aproximar de você para te esfaquear, você vai conseguir
fugir. Então, para variar, nós dois sairemos vivos dessa. Eu com meu orgulho e você...nem
tanto.
— Você ainda vai
morrer pelas minhas mãos, Brad! — Trent
exclamou.
— Volte logo
para os seus ratos, Trent. — Disse a voz de
Emmanuelle.
Ela
e Jerome haviam acabado de sair do esconderijo. Brad sorriu e disse:
— Eu falei que
eu resolveria tudo. Vocês não precisavam ter levantado...
— A voz desse
maluco não me deixa dormir. — Admitiu
Emmanuelle.
— Idem. — Disse Jerome.
— É...eu não os
culpo. — Brad riu baixo
e, rapidamente, olhou de volta para Trent. — Então...?
Trent
cuspiu novamente no chão e, então, disse:
— Não se
preocupem comigo. Eu vou embora...mas eu voltarei.
— E não se
esqueça de trazer os seus ratos da próxima vez. — Aconselhou Jerome. — É sempre fácil
de matar aquelas coisas.
— Claro... — Trent grunhiu e se virou em direção ao
corredor noroeste. — Apenas
esperem...
Após
dizer isso, ele começou a andar em direção à escuridão. Brad, Jerome,
Emmanuelle e eu apenas o observamos até que, com alguns segundos passados, ele
desapareceu nas sombras. Apenas respirar fundo, eu disse:
— Espero que ele
não continue sendo um problema...
— Nada que não
possamos derrotar. — Disse Jerome. — Disso, você pode ter certeza.
— Sim. — Emmanuelle concordou sorrindo. E, então, ela
se voltou diretamente para mim. — Você deveria
dormir agora. Acho que já foi adrenalina demais por uma noite.
— Verdade. — Admitiu Brad e, em seguida, ele bagunçou o
meu cabelo. — Temos muito o
que fazer e falar amanhã. Agora, tente dormir um pouco, Jack. Deixe que eu
assumo a vigia agora.
Eu
nem tinha como discordar. Eu realmente estava bem cansado. Quase me arrastando,
eu voltei para dentro do esconderijo. No mesmo instante em que eu me deitei, eu
peguei no sono.
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