O Medo
Aos poucos as memórias iam voltando à minha mente.
Estávamos no meio de uma guerra. Apavorados, sem dúvida. Nunca deveriam deixar
pessoas como nós participar de uma luta como aquela. Nós éramos jovens,
estúpidos, inexperientes e corajosos...até entrarmos no campo de batalha. No
momento em que pisamos naquela terra inóspita para enfrentar o inimigo...tudo
mudou. Ah... Nada como o som de tiros, explosões e aqueles que você adora
morrendo logo do seu lado. Você fica em choque. Em seguida , aliviado, pois
aquela bala acertou a cabeça daquele que estava ao seu lado e não a sua. Depois
de disso, você se sente culpado por pensar assim e, então, você fica triste.
Porém, esse pensamento não podia durar muito. Um único momento marcado pela
falta de atenção pode significar a sua morte. E foi quando aquilo aconteceu.
Uma explosão. Fogo. Um barulho que quase me ensurdeceu.
Sinceramente, eu preferia ter ficado surdo. Assim, eu
evitaria os sons que vieram em seguida.
Os gritos de dor e desespero de meus aliados ainda me
fazem tremer.
Nós...estávamos nos protegendo dentro de uma casa. Ou,
pelo menos, do que sobrou dela. E...não, eu não faço a mínima ideia do que
havia acontecido com os civis que moravam ali. E, não, eu não quero saber.
Tudo o que eu sabia é que uma explosão quase me matou,
acabando por me soterrar nos escombros do lugar. Eu...achei que eu era o único
sobrevivente, mas...alguém estava me salvando naquele exato instante.
Imaginar que eu havia morrido e um anjo estava ali para
me levar para o Paraíso...parecia improvável. A minha visão estava embaçada,
mas, felizmente, eu voltava a enxergar aos poucos. Foi nesse instante que eu
acabei tossindo.
Naquele instante, a pessoa que me carregava me largou no
chão...de maneira não muito delicada. Eu gemi de dor e, então, olhei na direção
dele.
Já como usava a mesma farda que eu, ele era, com certeza,
do meu exército. E ele havia não só sobrevivido a batalha sem sofrer ferimentos
graves...como também havia me resgatado. Aquilo era sem dúvida muito estranho.
Por quê? Bem...era só olhar para ele.
Ele não tinha nada de especial. Não era muito musculoso.
Nem muito alto. Nem tinha uma expressão heroica no rosto. Ele...era normal.
—
Você está vivo. — Ele
disse sem muita animação. —
E consciente. Isso é ótimo. Agora você pode andar.
—
Você não precisava ter me jogado no chão... —
Eu respondi de maneira atravessada.
—
Você já olhou para mim? Você é muito maior do que eu, tanto em altura, tanto
em peso.
—
Mas você estava me carregando...
—
Claro. Eu tinha um motivo.
—
Não queria ficar sozinho, não é? Tinha medo disso, hein?
—
É.
Eu olhei mais atentamente para ele. Os olhos dele
pareciam ser tomados pelo medo. Como aquela criança assustada havia me salvado
e, principalmente, como ele havia sobrevivido à guerra?
Sinceramente...não era importante. Naquele exato
instante, eu só queria sair daquele inferno.
—
Vamos voltar para a nossa cidade? —
Ele me perguntou. Foi uma boa sugestão.
—
Claro... — Eu respondi.
Sem dizer mais nada, ele começou a andar. Sem protestar,
eu o segui.
Enquanto caminhávamos pelas ruínas da cidade que havia se
tornado um campo de batalha...eu os vi. Aliados. Conhecidos. Amigos. Pessoas
pelas quais eu poderia me arriscar para salvar a vida deles...coisa que não
aconteceria. Eles estavam mortos agora...e não havia nada que eu podia fazer.
A cada passo que eu dava, meu coração se enchia de
tristeza. Infelizmente, essa tristeza foi se transformando em medo. Eu sentia o
medo que todos eles haviam sentido. Eu sentia o medo de que poderia perder mais
pessoas que eu me importo daquela maneira. Eu sentia o medo de ter que voltar
para um inferno daqueles. Poucos instantes depois, eu parei.
Eu não conseguia dar mais nenhum passo. O medo havia me
paralisado. Poderia ser patético para quem visse, mas para mim...era
completamente desesperador.
—
Algum problema? —
Aquele homem me perguntou.
Aquela figura medrosa a minha frente de repente havia
mudado. Ele continuava tão magro e baixo quanto antes, mas...a sua voz havia
mudado. Apesar do olhar assustado, ele soava forte. E foi naquele instante que
eu percebi aquilo: a arma que ele carregava.
Quanto ao modelo...não havia nada de extraordinário. Era
um fuzil bem comum. Praticamente todos o usavam, inclusive eu. Mas aquilo não
era importante...comparado à pintura da arma. Preta como ébano, com inscrições
em branco. Eu não sabia o que significava as palavras, mas sabia o que aquela
arma significava. Aquele fuzil era a marca registrada no maior atirador de
nosso exército. Sinceramente, aquele homem a minha frente podia ser o maior
atirador da atualidade. Era uma lenda viva. Não era possível que o nosso grande
Longshot, apelido adquirido graças a sua pontaria incrível, tivesse morrido e
aquele homem tivesse pego a arma dele. Logo...
—
Você é Longshot? —
Perguntei.
—
Sim. — Ele respondeu
com extrema simplicidade.
—
Como eu posso acreditar nisso?
—
Eu não estou te obrigando a acreditar. Então, não acredite, se preferir.
Ele soava sensato. Isso eu tinha que reconhecer.
—
Bem...você ainda está vivo. —
Eu afirmei. — Você
não pode ser qualquer um, pelo menos.
—
Suponho que sim. —
Ele concordou comigo...eu acho.
—
E...como você sobreviveu?
—
Sentindo o que você está sentindo agora.
O que eu estava sentindo...? Ele não estaria falando
de...
—
Medo? — Arrisquei.
— Sim.
— Mas...isso não
faz sentido.
— Por que não?
— Porque o medo
deveria te atrapalhar, oras!
— E por que
isso?
— Ora...porque é
o que o medo faz. Ele te faz hesitar. Ele te faz desistir de fazer as coisas.
Ele é o exato aposto da coragem.
— E a coragem é
boa?
— Claro que sim!
— Ah...bem, eu
tenho que discordar.
— Por quê?
— Porque o medo
me fortalece.
Eu
não pude conter o riso. Aquilo era simplesmente ridículo.
— E como isso
funciona? — Eu perguntei.
— Por que eu
tenho medo de morrer. — Ele começou a
explicar. — Eu tenho medo
que as pessoas com que eu me importo morram. Eu tenho medo de não ser bom o
suficiente...em qualquer situação. E é exatamente isso o que motiva a lutar. Eu
tenho que ser o melhor soldado possível para que eu não morra. Eu tenho que ser
o melhor soldado possível para proteger aqueles que podem não conseguir se
defender. — O atirador fez
uma pausa para respirar. — O medo também
me faz hesitar. Ao hesitar, eu penso. No meio do campo de batalha, o pensamento
rápido pode te salvar. Ao invés de avançar cegamente contra o inimigo, eu penso
na melhor estratégia possível. Com isso, eu sobrevivo. Com isso, eu posso
salvar vidas que seriam desperdiçadas. — Ele sorriu. — Mas é claro que, para isso, você não pode
ser dominado pelo medo. Ah... Vamos apenas dizer que tem que haver um certo
equilíbrio entre medo e coragem. — De repente, o
atirador começou a rir. — Se eu fosse
corajoso...eu já teria morrido, com certeza.
Tudo
o que aquele homem, cuja aparência era tão simples que me fez ter dúvidas sobre
ele ser o grande Longshot, havia acabado de dizer...fazia todo o sentido do
mundo.
Com
um sorriso no rosto, eu o segui. Voltamos para a nossa cidade após caminhar por
mais de um dia. Chegando lá, nos despedimos. Ele tinha que ver a família dele,
e eu tinha que ver a minha.
Ao
olhar para a minha esposa e o meu filho que tinha poucos meses de vida...eu
senti medo. Porém, desta vez, eu consegui sorrir.
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