segunda-feira, 30 de março de 2015

Conto 2

O Medo


Aos poucos as memórias iam voltando à minha mente. Estávamos no meio de uma guerra. Apavorados, sem dúvida. Nunca deveriam deixar pessoas como nós participar de uma luta como aquela. Nós éramos jovens, estúpidos, inexperientes e corajosos...até entrarmos no campo de batalha. No momento em que pisamos naquela terra inóspita para enfrentar o inimigo...tudo mudou. Ah... Nada como o som de tiros, explosões e aqueles que você adora morrendo logo do seu lado. Você fica em choque. Em seguida , aliviado, pois aquela bala acertou a cabeça daquele que estava ao seu lado e não a sua. Depois de disso, você se sente culpado por pensar assim e, então, você fica triste. Porém, esse pensamento não podia durar muito. Um único momento marcado pela falta de atenção pode significar a sua morte. E foi quando aquilo aconteceu.
Uma explosão. Fogo. Um barulho que quase me ensurdeceu.
Sinceramente, eu preferia ter ficado surdo. Assim, eu evitaria os sons que vieram em seguida.
Os gritos de dor e desespero de meus aliados ainda me fazem tremer.
Nós...estávamos nos protegendo dentro de uma casa. Ou, pelo menos, do que sobrou dela. E...não, eu não faço a mínima ideia do que havia acontecido com os civis que moravam ali. E, não, eu não quero saber.
Tudo o que eu sabia é que uma explosão quase me matou, acabando por me soterrar nos escombros do lugar. Eu...achei que eu era o único sobrevivente, mas...alguém estava me salvando naquele exato instante.
Imaginar que eu havia morrido e um anjo estava ali para me levar para o Paraíso...parecia improvável. A minha visão estava embaçada, mas, felizmente, eu voltava a enxergar aos poucos. Foi nesse instante que eu acabei tossindo.
Naquele instante, a pessoa que me carregava me largou no chão...de maneira não muito delicada. Eu gemi de dor e, então, olhei na direção dele.
Já como usava a mesma farda que eu, ele era, com certeza, do meu exército. E ele havia não só sobrevivido a batalha sem sofrer ferimentos graves...como também havia me resgatado. Aquilo era sem dúvida muito estranho. Por quê? Bem...era só olhar para ele.
Ele não tinha nada de especial. Não era muito musculoso. Nem muito alto. Nem tinha uma expressão heroica no rosto. Ele...era normal.
Você está vivo. Ele disse sem muita animação. E consciente. Isso é ótimo. Agora você pode andar.
Você não precisava ter me jogado no chão... Eu respondi de maneira atravessada.
Você já olhou para mim? Você é muito maior do que eu, tanto em altura, tanto em peso.
Mas você estava me carregando...
Claro. Eu tinha um motivo.
Não queria ficar sozinho, não é? Tinha medo disso, hein?
É.
Eu olhei mais atentamente para ele. Os olhos dele pareciam ser tomados pelo medo. Como aquela criança assustada havia me salvado e, principalmente, como ele havia sobrevivido à guerra?
Sinceramente...não era importante. Naquele exato instante, eu só queria sair daquele inferno.
Vamos voltar para a nossa cidade? Ele me perguntou. Foi uma boa sugestão.
Claro... Eu respondi.
Sem dizer mais nada, ele começou a andar. Sem protestar, eu o segui.
Enquanto caminhávamos pelas ruínas da cidade que havia se tornado um campo de batalha...eu os vi. Aliados. Conhecidos. Amigos. Pessoas pelas quais eu poderia me arriscar para salvar a vida deles...coisa que não aconteceria. Eles estavam mortos agora...e não havia nada que eu podia fazer.
A cada passo que eu dava, meu coração se enchia de tristeza. Infelizmente, essa tristeza foi se transformando em medo. Eu sentia o medo que todos eles haviam sentido. Eu sentia o medo de que poderia perder mais pessoas que eu me importo daquela maneira. Eu sentia o medo de ter que voltar para um inferno daqueles. Poucos instantes depois, eu parei.
Eu não conseguia dar mais nenhum passo. O medo havia me paralisado. Poderia ser patético para quem visse, mas para mim...era completamente desesperador.
Algum problema? Aquele homem me perguntou.
Aquela figura medrosa a minha frente de repente havia mudado. Ele continuava tão magro e baixo quanto antes, mas...a sua voz havia mudado. Apesar do olhar assustado, ele soava forte. E foi naquele instante que eu percebi aquilo: a arma que ele carregava.
Quanto ao modelo...não havia nada de extraordinário. Era um fuzil bem comum. Praticamente todos o usavam, inclusive eu. Mas aquilo não era importante...comparado à pintura da arma. Preta como ébano, com inscrições em branco. Eu não sabia o que significava as palavras, mas sabia o que aquela arma significava. Aquele fuzil era a marca registrada no maior atirador de nosso exército. Sinceramente, aquele homem a minha frente podia ser o maior atirador da atualidade. Era uma lenda viva. Não era possível que o nosso grande Longshot, apelido adquirido graças a sua pontaria incrível, tivesse morrido e aquele homem tivesse pego a arma dele. Logo...
Você é Longshot? Perguntei.
Sim. Ele respondeu com extrema simplicidade.
Como eu posso acreditar nisso?
Eu não estou te obrigando a acreditar. Então, não acredite, se preferir.
Ele soava sensato. Isso eu tinha que reconhecer.
Bem...você ainda está vivo. Eu afirmei. Você não pode ser qualquer um, pelo menos.
Suponho que sim. Ele concordou comigo...eu acho.
E...como você sobreviveu?
Sentindo o que você está sentindo agora.
O que eu estava sentindo...? Ele não estaria falando de...
Medo? Arrisquei.
Sim.
Mas...isso não faz sentido.
Por que não?
Porque o medo deveria te atrapalhar, oras!
E por que isso?
Ora...porque é o que o medo faz. Ele te faz hesitar. Ele te faz desistir de fazer as coisas. Ele é o exato aposto da coragem.
E a coragem é boa?
Claro que sim!
Ah...bem, eu tenho que discordar.
Por quê?
Porque o medo me fortalece.
Eu não pude conter o riso. Aquilo era simplesmente ridículo.
E como isso funciona? Eu perguntei.
Por que eu tenho medo de morrer. Ele começou a explicar. Eu tenho medo que as pessoas com que eu me importo morram. Eu tenho medo de não ser bom o suficiente...em qualquer situação. E é exatamente isso o que motiva a lutar. Eu tenho que ser o melhor soldado possível para que eu não morra. Eu tenho que ser o melhor soldado possível para proteger aqueles que podem não conseguir se defender. O atirador fez uma pausa para respirar. O medo também me faz hesitar. Ao hesitar, eu penso. No meio do campo de batalha, o pensamento rápido pode te salvar. Ao invés de avançar cegamente contra o inimigo, eu penso na melhor estratégia possível. Com isso, eu sobrevivo. Com isso, eu posso salvar vidas que seriam desperdiçadas. Ele sorriu. Mas é claro que, para isso, você não pode ser dominado pelo medo. Ah... Vamos apenas dizer que tem que haver um certo equilíbrio entre medo e coragem. De repente, o atirador começou a rir. Se eu fosse corajoso...eu já teria morrido, com certeza.
Tudo o que aquele homem, cuja aparência era tão simples que me fez ter dúvidas sobre ele ser o grande Longshot, havia acabado de dizer...fazia todo o sentido do mundo.
Com um sorriso no rosto, eu o segui. Voltamos para a nossa cidade após caminhar por mais de um dia. Chegando lá, nos despedimos. Ele tinha que ver a família dele, e eu tinha que ver a minha.

Ao olhar para a minha esposa e o meu filho que tinha poucos meses de vida...eu senti medo. Porém, desta vez, eu consegui sorrir. 

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