Condenados pelo Infortúnio
Eu não tremia, mas, ao mesmo tempo, não me sentia muito bem
perto do recém chegado. Aquele olhar frio somado àqueles músculos que poderiam
rachar o meu crânio sem dificuldades...era, no mínimo, desconfortável. Entretanto,
eu senti algo batendo de leve no meu ombro. Brad estava do meu lado. Ele abriu
um sorriso modesto e disse:
—
Relaxe. Ele é um dos nossos. E é gente fina...depois que você o conhece.
Aquilo me acalmou um pouco. Eu assenti com a cabeça,
afirmando que eu havia entendido o recado. Brad bagunçou o meu cabelo e então
foi até Jerome.
—
O que será que temos de bom para hoje? —
Perguntou Emmanuelle que, agora, aproximava-se dos outros.
—
É o que vamos descobrir agora. —
Respondeu Jerome ligeiramente animado.
Brad tirou uma faca do bolso esquerdo traseiro de sua
calça. Jerome brandiu o facão de sua cintura. Rapidamente, cada um deles abriu
uma caixa. Ao ver o que tinha dentro de sua caixa, Brad sorriu e exclamou
vitorioso. Jerome parecia feliz, mas sua comemoração foi mais contida,
limitando-se a um sorriso discreto. Emmanuelle olhou rapidamente para as duas
caixas e então disse:
—
Nada mal, hein? — Ela
sorriu calorosamente.
—
É...não tenho como reclamar mesmo. —
Brad riu baixo. Como se tivesse se lembrado de algo, ele se voltou rapidamente
para Jerome. Olhando com mais calma, seu corpo estava completamente suado. — Espero que você não tenha
tido muito trabalho.
—
Sem problemas. —
Jerome disse calmamente. —
Os dois caras eram bem fracos. Eles estavam desesperados. Eu dei sorte até de
encontrar eles. — Ele
suspirou. —
Bem...terminei o meu turno. E agora eu estou com fome.
Brad sorriu e, então, disse:
—
Certo. Então...vamos comer.
Rapidamente, Emmanuelle, Brad e Jerome começaram a
retirar coisas que eu não esperaria encontrar naquela caixa. As latas de
legumes, pacotes com pão e as garrafas plásticas com água, normal. As barras de
proteína e as garrafas de leite e suco eram um pouco inusitadas. Mas foram os generosos
pedaços de carne crua que me chamaram a atenção.
—
Você parece surpreso. —
Emmanuelle riu baixo. Creio que ela se referia a mim.
—
Bem...é. — Eu
concordei. — Essa
comida parece...boa.
—
Mas é claro! — Brad
riu alegremente enquanto fazia uma fogueira com uns pedaços de madeira. — Nós somos grandes astros!
Nós merecemos isso, não acha?
Eu estava um pouco aturdido ainda. Então, antes que eu
pudesse dizer qualquer coisa, Emmanuelle falou:
—
Nós somos a atração desse show doentio. Não faria muito sentido eles nos
alimentarem com lixo. —
Ela pegou uma barra de proteína, abriu uma das extremidades da embalagem e
comeu um pedaço. Após mastigar e engolir, ela continuou a me explicar. — Nós temos que estar
sempre bem para podermos ter uma boa...performance. — Ela hesitou um pouco antes de dizer a última
palavra, claramente irritada. —
Por isso, as refeições que ganhamos são boas, além de saudáveis. Também
recebemos alguns medicamentos, dos mais variados tipos. Temos desde aqueles
contra dores de cabeça até bactericidas. Temos também alguns suplementos vitamínicos
e proteicos. Alguns chegam a ficar bem em forma aqui por causa disso tudo
somado aos exercícios. Sabe, não é? Correr, saltar de um lado pro outro, lutar
até a morte...
—
Tudo em nome desse espetáculo... —
Murmurou Jerome antes de cuspir no chão.
Bem...tudo aquilo fazia sentido. Brad, que acabara de a
fogueira, levantou-se para pegar um pedaço de carne crua. Com o que parecia ser
um galho de uma árvore, ele a espetou e a aproximou do fogo. Enquanto a carne
era lentamente assada, ele começou a dizer:
—
Nós também recebemos algumas armas nessas caixas. Claro que, antes de
conseguirmos elas, nós tivemos que usar nossas próprias mãos. — Brad sorriu em minha
direção. Expressões sérias tomaram conta dos rostos de Emmanuelle e Jerome.
Rapidamente, ele voltou a falar. —
Ah. Eu creio ter que esclarecer algo sobre as armas para você, Jack. — Ele fez uma breve pausa,
talvez, para organizar seus pensamentos. —
Armas de fogo são uma raridade aqui. Munição, idem. Eu ando com um revólver em dos meus bolsos.
Ele tinha duas balas. Hoje, só uma. Tive que gastar uma numa situação que... — Brad balançou a cabeça para os lados. — Bem, saiba que foi a única alternativa. Se
eu for gastar essa bala agora...vai ter que ser em uma situação tão crítica
quanto a que eu já passei antes.
— Enfim... — Interveio Emmanuelle. — Nós acabamos lutando apenas com armas
brancas. Facas. Facões. Pés de cabra. Corrente. Bastões. Martelos. Esse tipo de
coisa.
— Aquelas com
lâminas são as favoritas da maioria. — Comentou Brad
quase que entediado.
— É. — Concordou Jerome. — O que nos leva a outro ponto importante:
treinar você.
Minha
espinha gelou quando percebi que ele se referia a mim.
— Nós não
podemos ficar te sustentando garoto. — Brad riu
baixo. — Você vai ter
que contribuir com a nossa pequena e amigável comunidade.
—
Não se preocupe. —
Pediu Emmanuelle. —
Com o tempo, você ganha prática.
—
Eu...não. — Eu estava
tão nervoso que eu nem conseguia formar uma frase decente.
—
Você. Sim. — Jerome
disse friamente. — Se
você quer sobreviver aqui, você vai ter que aprender a matar.
—
Não! — Eu exclamei. — Eu nunca vou fazer isso!
—
Jack... — Emmanuelle
me chamou tão calmamente que eu até relaxei um pouco. — Nós queremos te ajudar. Nós acreditamos que
haja um motivo para você estar aqui. Nunca vimos alguém como você nesse buraco.
Por isso temos certeza disso. Você perdeu parte de sua memória. Não tem
problema. Com o tempo, você se lembrará do que aconteceu. Nós tentaremos o
proteger enquanto isso. Mas...nós, talvez, não estejamos junto de você o tempo
todo. Você precisa saber se defender caso algo aconteça. — Ela respirou fundo e
sorriu. — Entendeu?
O que ela falou realmente fez sentido. O jeito que ela
falou realmente me acalmou. Então, eu esbocei um sorriso e assenti com a
cabeça, afirmando que eu havia entendido a explicação.
—
Ótimo. — Emmanuelle
disse sorrindo, parecendo, agora, ainda mais bela.
—
Mas...eu ainda não entendo uma coisa. —
Eu disse.
—
O que seria, querido? —
Ela perguntou docemente.
—
Qual o nosso objetivo então? —
Perguntei. — Já que
não podemos fugir...
—
Sobreviver. —
Respondeu, secamente, Jerome. —
Até que algo aconteça.
Aquilo me irritou um pouco. Logo, eu trinquei os dentes e
esbravejei:
—
Ótimo! Vamos esperar uma intervenção divina, então!?
—
Talvez. — Respondeu
Brad calmamente. —
Talvez uma tropa de operações especiais apareça. Não esqueça que esse show é
algo extremamente ilegal. Tenho certeza que tem muita gente querendo acabar com
esse lugar. E, ainda por cima, o Matadouro tem uma localização fixa. Os donos
desse lugar só podem esconder o lugar, certo? Quando algum grupo de paladinos
da justiça nos achar, vão destruir o lugar e, talvez, nos salvem. Por mais que
sejamos criminosos, é bem provável que tenham pena de nós por termos passado
por tudo isso. Podemos até receber algum tipo de acompanhamento psicológico, se
dermos sorte...
Aquela ideia...acabou me acalmando um pouco. Pensar que
eles, que já sobreviveram naquele lugar por tanto tempo, conseguiam se manter
racionais e ainda ter esperanças era animador, pra dizer o mínimo. Foi aí que
eu percebi que eu ainda não havia perguntado algo:
—
Há quanto tempo vocês estão aqui?
Os três se entreolharam. Houve silêncio por alguns
segundos. Enfim, Brad se levantou e disse:
—
Bem...creio que, além disso, devemos contar pra você o porquê de estarmos aqui,
não?
—
Não. Não é necessário... —
Eu murmurei.
—
Claro que é. — Ele
insistiu sorrindo. —
Eu começo.
Eu não nego estar curioso sobre aquilo, mas...não me
parecia muito educado perguntar, principalmente por que eu não poderia
retribuir da mesma forma. Maldita amnésia...
—
Eu estou aqui faz seis anos. —
Disse Brad. — Eu fui
pego após um golpe que deu errado. —
Ele suspirou. — Sim,
eu era um golpista. E um ladrão também, nas horas vagas.
—
Infelizmente, quando o golpe deu errado, ele foi pego por vários outros crimes
que ele já tinha cometido. —
Acrescentou Emmanuelle.
—
É... — Ele bufou. — Tudo por causa de um
diamante falsificado. Eu não achava que o ricaço soubesse tanto do assunto. — Ele cerrou o punho
esquerdo, aquele que não segurava o galho com o pedaço de carne. — Tantos burgueses atrás de
mim... Não deu em outra. Vim parar aqui nesse inferno. — Brad olhou para Emmanuelle. — Sua vez, sedutora.
Ela esboçou um sorriso e começou a falar:
—
Eu estou aqui há cinco anos. Eu fui pega por um guarda costas de um velho milionário
tarado. Ele me viu colocando sonífero na taça de vinho daquele verme...
—
Por pouco que você não colocou suas lindas mãos na fortuna daquele magnata... — Acrescentou Brad num murmúrio.
—
Pois é... —
Emmanuelle bufou e olhou para o teto. —
Aquele seria o meu último trabalho. Eu teria dinheiro o suficiente para viver o
resto de minha vida viajando...
—
E sem arriscar a vida enquanto seduzia homens poderosos a fim de conseguir
informações secretas para sua organização. —
Comentou Brad. — Informações
que mudaram o rumo de conflitos e economias pelo mundo. — Ele sorriu. Seus olhos verdes brilhavam. — Não se esqueça desses
pequenos detalhes.
Emmanuelle riu baixo e concordou:
—
É...quase que me esqueço de falar disso...
Brad olhou agora para Jerome. Ele o encarou de volta.
—
Sua vez, grandão. —
Brad sorriu.
Jerome bufou. Porém, após alguns segundos, ele disse:
—
Eu estou aqui há dez anos. Fui um dos primeiros a chegar ao Matadouro.
Eu engoli em seco. O pensamento de chegar neste lugar
horrendo, sozinho, e ter que sobreviver sem apoio ou algum tipo de
conselho...era simplesmente horrível.
—
Eu fui acusado de um assassinato que eu não cometi. — Jerome continuou. — Eu vi o culpado cometer o crime. Um homem,
com pouco menos de um metro e setenta de altura, matou uma mulher que tinha
pouco mais de um e sessenta. Aquele verme...aparentemente era alguém da alta
sociedade. Eu cheguei ao local do crime depois que ele havia terminado de
esfaquear a mulher. Ela, aparentemente, era uma prostitua. Talvez ela tivesse
descoberto algo sobre o homem e tivesse tentado o chantagear... — Ele respirou fundo. — Eu não sei e nunca
saberei. Só sei que aquele verme a matou e me usou de bode expiatório. Afinal,
eu tenho muito mais cara de marginal do que aquele riquinho desgraçado, não? — Jerome cerrou os dentes.
—
A justiça virá até você, meu amigo. —
Disse Brad. —
Diferente da maioria que está aqui, você não é um criminoso. Se for pra alguém
sair daqui vivo, será você, Jerome.
Os
dois se entreolharam e trocaram um sorriso.
— E talvez você
também, não é, Jack? — Emmanuelle me
perguntou.
Jerome
e Brad se voltaram para mim. Eu respirei fundo e disse:
— Eu espero que
sim. E também espero que vocês me ajudem. Assim, eu poderei ajudar vocês
também.
— É isso que eu
queria ouvir, garoto. — Disse Jerome. — O seu treinamento começará daqui a pouco.
Mas, por ora... — Ele sorriu. — Por ora, venha comer junto conosco.
Eu
não pude evitar. Eu sorri, assim como Brad e Emmanuelle. Por mais estranha que
toda a situação ainda parecesse, eu estava um pouco mais tranqüilo agora.
Então, pude me sentar com meus novos aliados e saborear uma refeição quente.
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