sexta-feira, 20 de março de 2015

O Matadouro, Capítulo 1

Bem vindo ao Matadouro


Garoto! A voz de um homem disse. Acorde, garoto!
Pare com isso! Uma mulher exclamou. Deixe ele descansar...
Ele já descansou o bastante. O homem retrucou. Além do mais, temos muita coisa pra explicar pra ele...
Mas...
E admita que você também está curiosa sobre o porquê desse garoto estar aqui junto com a gente.
Bem...sim, mas...
Até o momento, eu estava de olhos fechados, ouvindo a conversa dos dois. Eu tinha quase certeza de que eles falavam de mim. Eu tentava me lembrar do que havia acontecido. Minha mente estava confusa. Minhas memórias, turvas. Eu estava deitado em uma superfície rígida, irregular e fria. Minhas costas doíam. Nada comparado à dor latejante em minha cabeça, mas, mesmo assim, era realmente desconfortável. Enfim, acabei optando por abrir os olhos.
Olha só... O homem disse. Ele soava ligeiramente animado. Ele está vivo.
Ufa... A mulher suspirou claramente aliviada.
Minha visão estava um pouco embaçada, mas, aos poucos, fui conseguindo distinguir as formas e cores ao meu redor. A minha frente estavam um homem e uma mulher. Entretanto, eu não conseguia os ver detalhadamente. Porém, eu tinha certeza que esses eram os dois que falavam há pouco. Eles eram as únicas pessoas que estavam próximas de mim.
Temos muito assunto para conversar, moleque... O homem disse. Agora, o resquício de felicidade em sua voz havia desaparecido.
A essa altura, minha visão já havia se recuperado totalmente. Agora, eu podia ver claramente o homem e a mulher. Ambos, apesar de não parecerem ter mais de trinta anos de idade, pareciam horríveis. Cabelos desgrenhados. Pele e, principalmente, rostos imundos. Pequenos arranhões e algumas cicatrizes estavam espalhados pelos corpos. As roupas também não estavam em melhor estado.
C-certo... Eu disse após hesitar um pouco.
Admito, porém, que os dois seriam realmente belos se não fossem por esses problemas. O homem devia ter um pouco mais de um metro e oitenta de altura. Seu corpo, esguio, era levemente musculoso. Sua pele tinha um tom claro de caramelo. Seu cabelo, castanho claro, era curto, levemente espetado. Sua barba era rala. Seus olhos, verdes, eram escuros. A expressão no seu rosto era corajosa, quase heroica. Ele usava um simples colete de couro bege, calças jeans surradas e sapatos, também de couro. A mulher era cerca de dez centímetros mais baixa do que ele. Após se arrumar um pouco, ela poderia se passar por alguma diva do cinema. Sua pele era clara. Os cabelos longos eram tão negros quanto ébano. Seus olhos azuis claros eram penetrantes. O rosto tinha traços delicados e lábios carnudos e avermelhados. O rosto dela estava calmo. Sua expressão era reconfortante. Ela usava uma simples camisa branca de algodão, além de calças jeans desbotadas e sandálias de couro.
O que você quer saber antes? O homem me perguntou. Onde estamos? Por que estamos aqui? Quem somos nós dois?
Ah...é. Eu pressionei levemente a minha nuca. Eu trinquei os meus dentes ao sentir a dor. Eu sentia uma pequena elevação nela. Um pequeno calombo, eu supus. Isso seria bom...
Certo... Ele suspirou. Seria bom se você especificasse uma ordem para eu poder responder, mas...
Comece pelo local. Opinou a mulher.
Claro. Ele olhou diretamente nos meus olhos. Tente não surtar, ok?
Eu olhei confuso para ele. Porém, eu me lembrei de algo. O ambiente. Eu não havia prestado muita atenção nele. Calmamente, olhei ao meu redor. A sala era relativamente grande. Havia apenas uma passagem estreita como entrada ou saída. O chão, paredes e teto pareciam ser compostos por largas placas de pedra de coloração bege. Uma brisa fresca e úmida vinha de alguma das rachaduras nas paredes. Alguns caixotes de madeira estavam no fundo da sala. Um punhado pedaços de madeira estava no centro da sala. Alguns deles pareciam estar queimados. Em cantos distintos do local haviam, ao todo, três sacos de dormir feitos de couro marrom.
Ah...ok. Respondi.
Ótimo. O homem sorriu. Então...tente imaginar um reality show diferente de qualquer outro. Aqui, não há um grande prêmio no final. Por quê? Bem...porque não há fim. Os participantes não podem sair desse lugar.
Eu estava ainda mais confuso. Então, limpei a garganta e perguntei:
E...quem são os participantes?
Criminosos. A mulher respondeu. Mais especificamente criminosos com quem ninguém se importa, ou que, então, tenham muitos inimigos lá fora.
O homem assentiu com a cabeça.
Aqui, você pode encontrar uma vasta gama de malfeitores. Ele cuspiu no chão. Ladrões. Hackers. Assassinos. Estupradores. O homem deu de ombros. Você também pode encontrar alguns cidadãos corruptos. Policiais. Políticos. Donos de grandes empresas. Até alguns religiosos. Ele bufou. Basicamente...qualquer pessoa que tenha feito algo para merecer ser presa...mas que não tinha ninguém para ficar do lado deles.
Você pode encontrar desde um ladrão sem nenhum parente conhecido a um político corrupto que manipulou uma cidade inteira. A mulher exibiu um sorriso levemente perverso, o que me assustou um pouco. Bem...não se pode negar que ver algumas dessas pessoas morrer te traz um tipo de satisfação.
E é por isso que as pessoas pagam para ver isso... O homem completou.
C-como...? Eu gaguejei. Quem...?
Não sabemos ao certo quem assiste. A mulher respondeu antes que eu terminasse a minha pergunta. Só sabemos que eles têm um bom conhecimento de informática.
Um programa onde criminosos matam criminosos não poderia ser exibido na teve a cabo, não é? Ele sorriu forçadamente. Claro que não... O homem olhou rapidamente para a única passagem para fora do local. Ele parecia esperar que alguém aparecesse. Aliado ou inimigo? Não sei dizer. Esse reality é transmitido em algum site nos confins da internet. Não é o tipo de coisa que você acha num site de procuras...
Um calafrio percorreu a minha espinha. Minhas pernas começaram a tremer. Se tudo o que eles disseram era verdade, isso significa que eu estava preso num lugar onde eu poderia ser morto a qualquer segundo. Não... Eu não queria acreditar. Se tudo isso fosse verdade, então...em quem eu poderia realmente confiar. Esses dois...será que eu poderia confiar neles? Mas, mesmo assim, algo ainda não me parecia certo. Eles afirmaram que todos os criminosos se matavam naquele lugar, não? Mas...por quê?
Ficou mudo de repente, hein? O homem riu baixo.
Pobrezinho... A mulher murmurou num tom doce. Ele está apavorado...confuso...
Não. Ele a interrompeu secamente. Ele só não sabe se pode confiar na gente.
Como ele sabia...?
Sendo bem claro...nós somos seus aliados. O homem disse friamente. Se não fossemos, você já estaria morto, entendeu?
Eu achei que as minhas pernas começariam a tremer. Mas não foi o que aconteceu. O que ele disse fez tanto sentido pra mim que eu apenas assenti com a cabeça.
Que bom que sua abordagem direta funcionou. A mulher disse. A irritação, apesar de pouca, era clara em sua voz.
É...  O homem riu baixo. Enfim...fica muito mais fácil de confiar numa pessoa depois que você sabe o nome dela, não?
Sim. Concordei.
Ótimo. Ele sorriu. Meu nome é Brad. Ele apontou para a amiga. Essa é Emmanuelle.
A mulher sorriu.
E você? Ela perguntou. Qual o seu nome?
O meu nome é... Bem, é... Nossa... Eu não consigo nem me lembrar de algo tão simples assim?
Eu...não consigo me lembrar... Eu admiti um pouco envergonhado. Para ser sincero...eu não consigo me lembrar de nada...
Os dois se entreolharam. Eles estavam visivelmente preocupados.
Certo... Brad limpou a garganta. Isso é...um pouco problemático.
É... Emmanuelle concordou. Nós esperávamos que você soubesse o porquê de você estar aqui. Um jovem de sua idade...aqui...é um tanto quanto estranho...
“Um jovem de minha idade...”.
Ah...quantos anos eu tenho...? Perguntei.
Bem... Emmanuelle levou o indicador ao queixo. Seu rosto assumiu uma expressão pensativa. Dezesseis...talvez? Entre...quinze e dezessete, eu acho.
Enfim...ainda temos mais coisas importantes para te explicar. Brad disse impacientemente. Sabe...aqueles tipos de coisas que vão te permitir sobreviver aqui...
Não temos como fugir? Perguntei sem hesitar.
Não até onde sabemos. Respondeu, prontamente, Emmanuelle. Esse programa já existe a uns dez anos e ninguém nunca ouviu falar de alguém que tenha saído daqui com vida.
Talvez tenha alguma coisa no subsolo. Brad disse. Em seguida, ele deu de ombros. Mas tem o problema dos canibais lá...
C-como!? Eu perguntei exaltadamente, assustando um pouco os dois a minha frente.
Bem...é. Emmanuelle coçou a nuca. Não tem regras aqui. Canibalismo é permitido...mas não é bem visto.
Por isso que todos eles se reuniram no subsolo. Acrescentou Brad. Entretanto...alguns deles sobem até aqui. Sabe como é, não é? Eles precisam comer. Ele sorriu malignamente. Mas não se preocupe. É bem mais provável que eles só venham à noite, quando quase todas as luzes são apagadas aqui na superfície. A visão desses canibais se adaptou à escuridão, então eles podem nos ver com clareza...mesmo que nós não possamos ver eles.
Nesse momento, o meu coração começou a palpitar. Minhas mãos começaram a suar. Foi nesse momento em que Emmanuelle deu um tapa na nuca de Brad.
Droga! Ele se encolheu ligeiramente.
Pare de tentar assustar o menino. Disse Emmanuelle. Sua expressão era séria. Temos muitas coisas importantes para contar, não?
Claro... Brad respondeu. Em seguida, ele olhou para mim. Você... Ah... Jack? Ele coçou o queixo. É... Jack. É assim que eu vou te chamar assim. Brad se voltou para Emmanuelle. Objeções?
Não. Ela respondeu sorrindo. Até que eu gostei. Combina com ele.
Ótimo. Brad olhou de volta para mim. Certo, Jack... Está vendo aqueles caixotes? Ele apontou para o fundo da sala.
Sim. Respondi. Eu já havia percebido eles ali.
Perfeito. Brad suspirou. Naqueles caixotes conseguimos mantimentos. É assim que conseguimos água, comida, medicamentos, armas e, mais raramente, roupas. Para conseguirmos eles...precisamos matar outros dos participantes. Seja quem for que controla tudo isso também assiste esse programa. Você vai ver que existem várias câmeras espalhadas pelo local. É um reality show, afinal de contas. Ele bufou. Enfim...os organizadores desse inferno fazem algumas intervenções no local. Eles aparecem de algumas portas sob algumas condições. Uma delas é para deixar os caixotes de mantimentos aqui...o que só acontece depois que algum dos participantes mata outro. Entendeu?
Eu assenti com a cabeça.
Brad! Emmanuelle exclamou. Olha só quem voltou.
Brad se voltou para a passagem. Eu fiz o mesmo. Lá, um homem havia acabado de aparecer. Ele tinha quase um metro e noventa de altura. Seu corpo era extremamente musculoso. Sua pele negra era coberta por cicatrizes e algumas tatuagens tribais. Seu rosto, sério, era formado por traços fortes e um queixo quadrado. Seu cabelo escuro era raspado quase que por completo. Seus olhos cor de mel não emitiam brilho. Ele trajava uma jaqueta preta, talvez de algodão, que agora estava completamente esfarrapada. Nas pernas, também usava calças jeans. Nos pés, coturnos negros. Na cintura, carregava um facão enferrujado e manchado de sangue. Apesar disso, a lâmina parecia bem afiada. Em cada um de seus braços, carregava um caixote de madeira.
Ah, Jerome! Brad sorriu. Que bom que você está vivo!
Abruptamente, o recém chegado colocou os dois caixotes no chão e olhou para mim.
Então...ele acordou. Disse Jerome com sua voz grave.
É... Eu concordei timidamente.
Jerome andou com passos largos até mim. Em seguida, ele parecia me analisar meticulosamente. Por fim, ele disse me perguntou:
Como você se chama?
J-jack. Respondi um pouco nervoso.
Certo... Ele esboçou um sorriso. Bem vindo ao Matadouro, Jack.

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