Bem vindo ao Matadouro
—
Garoto! — A voz de um
homem disse. —
Acorde, garoto!
—
Pare com isso! — Uma
mulher exclamou. —
Deixe ele descansar...
—
Ele já descansou o bastante. —
O homem retrucou. —
Além do mais, temos muita coisa pra explicar pra ele...
—
Mas...
—
E admita que você também está curiosa sobre o porquê desse garoto estar aqui
junto com a gente.
—
Bem...sim, mas...
Até o momento, eu estava de olhos fechados, ouvindo a
conversa dos dois. Eu tinha quase certeza de que eles falavam de mim. Eu
tentava me lembrar do que havia acontecido. Minha mente estava confusa. Minhas
memórias, turvas. Eu estava deitado em uma superfície rígida, irregular e fria.
Minhas costas doíam. Nada comparado à dor latejante em minha cabeça, mas, mesmo
assim, era realmente desconfortável. Enfim, acabei optando por abrir os olhos.
—
Olha só... — O homem
disse. Ele soava ligeiramente animado. —
Ele está vivo.
—
Ufa... — A mulher
suspirou claramente aliviada.
Minha visão estava um pouco embaçada, mas, aos poucos,
fui conseguindo distinguir as formas e cores ao meu redor. A minha frente
estavam um homem e uma mulher. Entretanto, eu não conseguia os ver
detalhadamente. Porém, eu tinha certeza que esses eram os dois que falavam há
pouco. Eles eram as únicas pessoas que estavam próximas de mim.
—
Temos muito assunto para conversar, moleque... —
O homem disse. Agora, o resquício de felicidade em sua voz havia desaparecido.
A essa altura, minha visão já havia se recuperado
totalmente. Agora, eu podia ver claramente o homem e a mulher. Ambos, apesar de
não parecerem ter mais de trinta anos de idade, pareciam horríveis. Cabelos
desgrenhados. Pele e, principalmente, rostos imundos. Pequenos arranhões e
algumas cicatrizes estavam espalhados pelos corpos. As roupas também não
estavam em melhor estado.
—
C-certo... — Eu disse
após hesitar um pouco.
Admito, porém, que os dois seriam realmente belos se não
fossem por esses problemas. O homem devia ter um pouco mais de um metro e
oitenta de altura. Seu corpo, esguio, era levemente musculoso. Sua pele tinha
um tom claro de caramelo. Seu cabelo, castanho claro, era curto, levemente
espetado. Sua barba era rala. Seus olhos, verdes, eram escuros. A expressão no
seu rosto era corajosa, quase heroica. Ele usava um simples colete de couro
bege, calças jeans surradas e sapatos, também de couro. A mulher era cerca de
dez centímetros mais baixa do que ele. Após se arrumar um pouco, ela poderia se
passar por alguma diva do cinema. Sua pele era clara. Os cabelos longos eram tão
negros quanto ébano. Seus olhos azuis claros eram penetrantes. O rosto tinha
traços delicados e lábios carnudos e avermelhados. O rosto dela estava calmo.
Sua expressão era reconfortante. Ela usava uma simples camisa branca de algodão,
além de calças jeans desbotadas e sandálias de couro.
—
O que você quer saber antes? —
O homem me perguntou. —
Onde estamos? Por que estamos aqui? Quem somos nós dois?
—
Ah...é. — Eu
pressionei levemente a minha nuca. Eu trinquei os meus dentes ao sentir a dor. Eu
sentia uma pequena elevação nela. Um pequeno calombo, eu supus. — Isso seria bom...
—
Certo... — Ele
suspirou. — Seria bom
se você especificasse uma ordem para eu poder responder, mas...
—
Comece pelo local. —
Opinou a mulher.
—
Claro. — Ele olhou
diretamente nos meus olhos. —
Tente não surtar, ok?
Eu olhei confuso para ele. Porém, eu me lembrei de algo.
O ambiente. Eu não havia prestado muita atenção nele. Calmamente, olhei ao meu
redor. A sala era relativamente grande. Havia apenas uma passagem estreita como
entrada ou saída. O chão, paredes e teto pareciam ser compostos por largas
placas de pedra de coloração bege. Uma brisa fresca e úmida vinha de alguma das
rachaduras nas paredes. Alguns caixotes de madeira estavam no fundo da sala. Um
punhado pedaços de madeira estava no centro da sala. Alguns deles pareciam
estar queimados. Em cantos distintos do local haviam, ao todo, três sacos de dormir
feitos de couro marrom.
—
Ah...ok. — Respondi.
—
Ótimo. — O homem
sorriu. —
Então...tente imaginar um reality show diferente de qualquer outro. Aqui, não
há um grande prêmio no final. Por quê? Bem...porque não há fim. Os participantes
não podem sair desse lugar.
Eu estava ainda mais confuso. Então, limpei a garganta e
perguntei:
—
E...quem são os participantes?
—
Criminosos. — A
mulher respondeu. —
Mais especificamente criminosos com quem ninguém se importa, ou que, então, tenham
muitos inimigos lá fora.
O homem assentiu com a cabeça.
—
Aqui, você pode encontrar uma vasta gama de malfeitores. — Ele cuspiu no chão. — Ladrões. Hackers. Assassinos.
Estupradores. — O
homem deu de ombros. —
Você também pode encontrar alguns cidadãos corruptos. Policiais. Políticos.
Donos de grandes empresas. Até alguns religiosos. — Ele bufou. —
Basicamente...qualquer pessoa que tenha feito algo para merecer ser presa...mas
que não tinha ninguém para ficar do lado deles.
—
Você pode encontrar desde um ladrão sem nenhum parente conhecido a um político
corrupto que manipulou uma cidade inteira. —
A mulher exibiu um sorriso levemente perverso, o que me assustou um pouco. — Bem...não se pode negar
que ver algumas dessas pessoas morrer te traz um tipo de satisfação.
—
E é por isso que as pessoas pagam para ver isso... — O homem completou.
—
C-como...? — Eu
gaguejei. — Quem...?
—
Não sabemos ao certo quem assiste. —
A mulher respondeu antes que eu terminasse a minha pergunta. — Só sabemos que eles têm
um bom conhecimento de informática.
—
Um programa onde criminosos matam criminosos não poderia ser exibido na teve a
cabo, não é? — Ele
sorriu forçadamente. —
Claro que não... — O
homem olhou rapidamente para a única passagem para fora do local. Ele parecia
esperar que alguém aparecesse. Aliado ou inimigo? Não sei dizer. — Esse reality é
transmitido em algum site nos confins da internet. Não é o tipo de coisa que
você acha num site de procuras...
Um
calafrio percorreu a minha espinha. Minhas pernas começaram a tremer. Se tudo o
que eles disseram era verdade, isso significa que eu estava preso num lugar
onde eu poderia ser morto a qualquer segundo. Não... Eu não queria acreditar.
Se tudo isso fosse verdade, então...em quem eu poderia realmente confiar. Esses
dois...será que eu poderia confiar neles? Mas, mesmo assim, algo ainda não me
parecia certo. Eles afirmaram que todos os criminosos se matavam naquele lugar,
não? Mas...por quê?
— Ficou mudo de
repente, hein? — O homem riu
baixo.
— Pobrezinho... — A mulher murmurou num tom doce. — Ele está apavorado...confuso...
— Não. — Ele a interrompeu secamente. — Ele só não sabe se pode confiar na gente.
Como
ele sabia...?
— Sendo bem
claro...nós somos seus aliados. — O homem disse
friamente. — Se não
fossemos, você já estaria morto, entendeu?
Eu
achei que as minhas pernas começariam a tremer. Mas não foi o que aconteceu. O
que ele disse fez tanto sentido pra mim que eu apenas assenti com a cabeça.
— Que bom que
sua abordagem direta funcionou. — A mulher
disse. A irritação, apesar de pouca, era clara em sua voz.
— É... — O homem riu
baixo. — Enfim...fica
muito mais fácil de confiar numa pessoa depois que você sabe o nome dela, não?
— Sim. — Concordei.
— Ótimo. — Ele sorriu. — Meu nome é Brad. — Ele apontou
para a amiga. — Essa é
Emmanuelle.
A
mulher sorriu.
— E você? — Ela perguntou. — Qual o seu nome?
O
meu nome é... Bem, é... Nossa... Eu não consigo nem me lembrar de algo tão
simples assim?
— Eu...não
consigo me lembrar... — Eu admiti um
pouco envergonhado. — Para ser
sincero...eu não consigo me lembrar de nada...
Os
dois se entreolharam. Eles estavam visivelmente preocupados.
— Certo... — Brad limpou a garganta. — Isso é...um pouco problemático.
— É... — Emmanuelle concordou. — Nós esperávamos que você soubesse o porquê
de você estar aqui. Um jovem de sua idade...aqui...é um tanto quanto
estranho...
“Um
jovem de minha idade...”.
— Ah...quantos
anos eu tenho...? — Perguntei.
— Bem... — Emmanuelle levou o indicador ao queixo. Seu
rosto assumiu uma expressão pensativa. —
Dezesseis...talvez? Entre...quinze e dezessete, eu acho.
— Enfim...ainda
temos mais coisas importantes para te explicar. — Brad disse impacientemente. — Sabe...aqueles
tipos de coisas que vão te permitir sobreviver aqui...
— Não temos como
fugir? — Perguntei sem
hesitar.
— Não até onde
sabemos. — Respondeu,
prontamente, Emmanuelle. — Esse programa
já existe a uns dez anos e ninguém nunca ouviu falar de alguém que tenha saído
daqui com vida.
— Talvez tenha
alguma coisa no subsolo. —Brad disse. Em
seguida, ele deu de ombros. — Mas tem o
problema dos canibais lá...
— C-como!? — Eu perguntei exaltadamente, assustando um
pouco os dois a minha frente.
— Bem...é. — Emmanuelle coçou a nuca. — Não tem regras aqui. Canibalismo é
permitido...mas não é bem visto.
— Por isso que
todos eles se reuniram no subsolo. — Acrescentou
Brad. —
Entretanto...alguns deles sobem até aqui. Sabe como é, não é? Eles precisam
comer. — Ele sorriu
malignamente. — Mas não se
preocupe. É bem mais provável que eles só venham à noite, quando quase todas as
luzes são apagadas aqui na superfície. A visão desses canibais se adaptou à
escuridão, então eles podem nos ver com clareza...mesmo que nós não possamos
ver eles.
Nesse
momento, o meu coração começou a palpitar. Minhas mãos começaram a suar. Foi
nesse momento em que Emmanuelle deu um tapa na nuca de Brad.
— Droga! — Ele se encolheu ligeiramente.
— Pare de tentar
assustar o menino. — Disse
Emmanuelle. Sua expressão era séria. — Temos muitas
coisas importantes para contar, não?
— Claro... — Brad respondeu. Em seguida, ele olhou para
mim. — Você... Ah...
Jack? — Ele coçou o
queixo. — É... Jack. É
assim que eu vou te chamar assim. — Brad se voltou
para Emmanuelle. — Objeções?
— Não. — Ela respondeu sorrindo. — Até que eu gostei. Combina com ele.
— Ótimo. — Brad olhou de volta para mim. — Certo, Jack... Está vendo aqueles caixotes? — Ele apontou para o fundo da sala.
— Sim. — Respondi. — Eu já havia percebido eles ali.
— Perfeito. — Brad suspirou. — Naqueles caixotes conseguimos mantimentos. É
assim que conseguimos água, comida, medicamentos, armas e, mais raramente,
roupas. Para conseguirmos eles...precisamos matar outros dos participantes. Seja
quem for que controla tudo isso também assiste esse programa. Você vai ver que
existem várias câmeras espalhadas pelo local. É um reality show, afinal de
contas. — Ele bufou. — Enfim...os organizadores desse inferno fazem
algumas intervenções no local. Eles aparecem de algumas portas sob algumas
condições. Uma delas é para deixar os caixotes de mantimentos aqui...o que só
acontece depois que algum dos participantes mata outro. Entendeu?
Eu
assenti com a cabeça.
— Brad! — Emmanuelle exclamou. — Olha só quem voltou.
Brad
se voltou para a passagem. Eu fiz o mesmo. Lá, um homem havia acabado de
aparecer. Ele tinha quase um metro e noventa de altura. Seu corpo era extremamente
musculoso. Sua pele negra era coberta por cicatrizes e algumas tatuagens
tribais. Seu rosto, sério, era formado por traços fortes e um queixo quadrado.
Seu cabelo escuro era raspado quase que por completo. Seus olhos cor de mel não
emitiam brilho. Ele trajava uma jaqueta preta, talvez de algodão, que agora
estava completamente esfarrapada. Nas pernas, também usava calças jeans. Nos
pés, coturnos negros. Na cintura, carregava um facão enferrujado e manchado de
sangue. Apesar disso, a lâmina parecia bem afiada. Em cada um de seus braços,
carregava um caixote de madeira.
— Ah, Jerome! — Brad sorriu. — Que bom que você está vivo!
Abruptamente,
o recém chegado colocou os dois caixotes no chão e olhou para mim.
— Então...ele
acordou. — Disse Jerome
com sua voz grave.
— É... — Eu concordei timidamente.
Jerome
andou com passos largos até mim. Em seguida, ele parecia me analisar meticulosamente.
Por fim, ele disse me perguntou:
— Como você se
chama?
— J-jack. — Respondi um pouco nervoso.
— Certo... — Ele esboçou um sorriso. — Bem vindo ao Matadouro,
Jack.
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