Bisavô
Desprezo. Essa deve ser a palavra certa para descrever o
que eu sinto por ele. A quem eu me refiro? Ao meu bisavô. Aquele verme se
recusava a morrer. Nunca na História da humanidade alguém deve ter tido tanta vontade
de viver. Sem propósito, ainda por cima. Aos noventa e sete anos de idade, ele
ainda respirava. E eu digo respirava por eu não considerar o que ele fazia como
viver. Arrastar-se pelos cômodos de um apartamento. Dormir metade do dia.
Assistir televisão durante as doze horas restantes. Se ele não precisasse
levantar de sua cama para ir ao banheiro, tenho certeza que ele viveria na
própria imundice. Ele reclamaria, obviamente, mas não faria nada a respeito.
Não... Isso não é jeito de se viver.
Vocês provavelmente devem me achar algum tipo de
desalmado por me referir a um idoso indefeso assim, não? Algo como “a vida de
um ser humano é preciosa” ou “cada um vive a vida do jeito que achar melhor”,
não? Pois é. Muitos já me disseram isso. E por que dizem isso? Porque não vivem
como eu. Eles não são atormentados por aquele verme repugnante...aquele fardo.
Imagine viver com alguém que não faz nada por conta
própria. Ele não cozinha a própria comida. Não lava a própria louça. Não limpa
o próprio o quarto. Reclama constantemente de cansaço, fome, calor ou frio.
Fala com você apenas para te pedir favores. Além disso, ele ainda tem o péssimo
hábito de me horrorizar.
Como? Bem, de vários jeitos. Primeiro, acho que seria
apropriado descrever aquela coisa. Ele tinha mais de um metro e oitenta de
altura, porém, com a idade, sua coluna foi se curvando, fazendo com que ele
tivesse cerca de um metro e setenta, em pé, dos pés a cabeça. Sua pele,
enrugada e flácida, tinha um tom amarelado. Seus lábios finos sempre estavam
contorcidos em um sorriso de ponta cabeça. Seu nariz pontiagudo e retorcido se
assemelhava ao bico de uma ave. Seu olhar era frio e vazio. A calvície havia
levado os cabelos do topo de sua cabeça. Porém, por algum motivo desconhecido,
ele tratava os cabelos grisalhos remanescentes com extremo cuidado e vaidade. Seu
hálito sempre fedia a algo apodrecido. Não creio que ele limpasse aquela velha dentadura,
mas, também, eu não podia descartar a hipótese de que o cheiro era oriundo dele
mesmo. Quem sabe? Ele já poderia estar apodrecendo há anos como um cadáver,
começando pelo seu interior. Isso não me surpreenderia.
Enfim, acho que a imagem dele já está bem clara. Agora,
imagine tal criatura praticamente surgindo perto de você sem aviso prévio.
Tente se imaginar voltando para casa depois de sair com
seus amigos. Você entra em casa silenciosamente, no meio da madrugada, tentando
não acordar ninguém. De repente, você ouve alguns passos quase imperceptíveis.
Calmamente, andando nas pontas dos pés, você segue até o seu quarto. No meio do
caminho, porém, você o vê. Um calafrio percorre todo o seu corpo. Aquela
criatura saída dos pesadelos de uma criança apenas...parada. No meio do
corredor. No escuro. Praticamente sem respirar. Enfim, ele balbucia algumas
palavras que você nem consegue identificar em qual idioma elas foram ditas.
Finalmente, ele anda, lentamente, até o quarto dele, desbloqueando o caminho
para o seu quarto.
Outra situação? Bem, imagine algo mais simples agora.
Você, cansado após voltar da escola ou do trabalho, consegue alguns minutos
para dormir. De repente, você sente uma sensação inquietante. Uma presença. Uma
respiração rouca que, gradativamente, tornava-se mais alta e desconcertante. Irritado,
você decide abrir os olhos. Rapidamente, você olha para todos os cantos de seu
quarto...até seus olhos avistarem a única porta do cômodo. Lá, a criatura te
observa. Sem dizer nada. Com o rosto retorcido, tomado pelo o que parecia ser
raiva. Seu coração acelera. Você tenta gritar, mas, por algum motivo, não
consegue. Aparentemente entediado, aquilo resolve deixar o seu quarto arrastando-se
para fora de seu campo de visão.
Eu acredito já ter dado exemplos o suficiente do porquê
de meu medo em relação a ele. Obviamente, eu não me sentia nem um pouco
confortável em ficar em casa. Logicamente, qualquer motivo para sair de casa
era válido para mim. Acredito que foi por isso que, diferentemente de meus
amigos do começo do ensino médio, eu parei de jogar videogames e ler livros com
a minha antiga freqüência.
Eu não posso deixar de culpar os meus pais por isso. Até
hoje, mesmo após tantos anos, eu ainda tenho certo rancor, tanto pelo meu pai,
tanto pela minha mãe. Afinal, a ideia daquele estorvo se mudar para junto
conosco foi deles. Aparentemente, aquela coisa era muito simpática, amigável e
até prestativa alguns anos antes de eu nascer. Já como o meu avô morreu cedo,
antes mesmo de eu nascer, ele, como avô de minha mãe, ajudou ela durante tempos
difíceis, chegando, inclusive, a pagar a faculdade e, quando ela se tornou
noiva de meu pai, a pagar o casamento deles.
Esse é o motivo pelo qual os meus pais toleram aquele
parasita em casa. Esse é o motivo que eu tento agüentar aquilo morando sob o
mesmo teto que mim.
Por outro lado, esse inferno me fez tentar escapar para
algum tipo de paraíso. E...eu fico feliz de dizer que eu consegui. Não era
perfeito...mas eu finalmente pude ser feliz. Eu...comecei a me enturmar com
novas pessoas. Eles tinham em comum o meu gosto de não ficar em casa. Não era o
tipo de gente que saia para festas e baladas, assim como eu, o que nos fazia
sair muitas vezes para ir para...bem, para praticamente qualquer lugar. Cinema.
Shopping. Praia. Até começamos a freqüentar academias e clubes esportivos
juntos.
Quando as férias chegaram, conseguimos fazer algo que há
muito tempo planejávamos. Nós passaríamos uma semana inteira na casa de praia
do tio de um dos meus amigos. E...aconteceu. O tio dele confiava em todos nós a
esse ponto. Então, por uma semana, nós estávamos no paraíso na terra. Nós fizemos
o que queríamos, quando queríamos, sem problemas.
O único problema foi...o fim. Não que algo de ruim tenha
acontecido no fim do sétimo dia. Mas...o sentimento que ficou foi ruim. Talvez
nunca mais teríamos um semana tão maravilhosa quanto aquela. Aquilo, sem dúvida
nos entristeceu, principalmente quando nós lembramos que teríamos que voltar
para nossas casas.
Ao entrar em casa...silêncio. Aquilo era realmente era
estranho. Era um dia de meio de semana, então, logicamente, meus pais não
estavam em casa. Certamente, estavam trabalhando. Normal. Mesmo assim...eu não
o ouvia. O fardo. Eu não o ouvia se arrastando pela casa. Eu nem ouvia a
televisão de seu quarto que permanecia ligada durante metade do dia.
Calmamente, eu andei até o meu quarto. Ao me aproximar,
ouvi, então, os típicos murmúrios incompreensíveis daquela criatura. Presumi
que a televisão não estava funcionando por algum motivo e, logicamente, ele
estava esperando que alguém a arrumasse para ele. Eu não estava com disposição
para atender mais algum de seus pedidos. Eu estava cansado da viagem de volta, além de
que, durante a última semana, dormir não foi algo que eu fiz por muito tempo. Tínhamos
muito o que fazer, meus amigos e eu. Enfim, agora era o momento de recuperar o sono
perdido.
Eu devo ter dormido por umas três horas, no máximo.
Infelizmente, algo me acordou. O som...de um telefone tocando. Eu xinguei o
mundo por cerca de cinco segundos...ai levantei para atender a ligação.
Eram...os meus pais. Eles disseram que estavam voltando para casa...que estavam
voltando...do funeral de meu bisavô. “Ele morreu há três dias, enquanto
dormia...”. Disse a minha mãe.
Minhas mãos começaram a suar. Todo o meu corpo tremia. “Como
assim...?”. Eu nem consegui segurar essas palavras em minha boca. Eu nem acho
que eu me despedi de minha mãe. Eu apenas desliguei o telefone e...corri até o
quarto dele.
Ninguém. Não havia ninguém lá. O quarto tinha um ar
decrépito, uma vez que eram raras as vezes que o podíamos limpar. A cama
desarrumada e desocupada. A tela preta da televisão desligada. Era...surreal.
Será que os murmúrios eram apenas a minha imaginação me
pregando peças? Eu...creio que sim. Faz sentido, não? Eu já estava tão
acostumado a ouvir tudo aquilo que...é bem provável que só tivesse imaginado os
murmúrios.
E, assim, de repente, eu percebi que eu estava errado
sobre algo. A minha felicidade não havia se extinguido. Agora, mesmo em casa,
eu poderia sorrir e viver minha vida.
Em relação aos meus amigos...eu acredito ter atingido um
certo tipo de equilíbrio. Eu voltei a falar com os meus amigos leitores de
livros e jogadores de videogames. Agora eu podia voltar a praticar os meus
velhos hobbies em paz. Ao mesmo tempo, continuei a andar com os meus outros
amigos. Nós saímos junto, porém, não com a mesma freqüência de antes.
Enfim...eu pude manter amizade com todos eles. E isso me deixava muito feliz.
Em relação aos meus pais...bem, eu ainda tenho certo
rancor por eles, como eu já havia dito. Entretanto, o convívio com eles durante
a minha adolescência se tornou bem melhor...comparado com o que era antes.
Durante as semanas que seguiu a morte de meu bisavô...eu
fui feliz, mas com certo receio. Aqueles murmúrios...ainda me perturbavam. Eu
ainda não tinha certeza se aquilo havia sido apenas obra de minha imaginação.
Então...eu o esperava. Beirando a paranoia...eu esperava que ele voltasse. Eu não fazia ideia do que o
meu bisavô faria, mas...eu o esperava. Às vezes...eu imaginava ter visto ou ouvido
ele. Cheguei até a ter um pesadelo com a participação dele. Mas foi apenas
isso.
Eventualmente, eu acabei me convencendo de que tudo
aquilo foi culpa de minha imaginação fértil. Ainda bem. Eu comecei a viver bem
melhor. Eu andava mais tranqüilo e descansado.
Então, um dia qualquer, depois de um pouco mais de um mês
desde a morte do meu bisavô...aquilo aconteceu. Eu estava deitado na minha
cama, com meu notebook no meu colo, ouvindo música. Lentamente, a maçaneta
começou a girar. Eu esperava que fosse o meu pai ou a minha mãe, então eu nem
olhei para a porta. Eu estava distraído ouvindo música. Cerca de quatro minutos
depois, com o fim dela, eu me lembrei da minha porta. Aí...eu percebi algo
horripilante. Sem a música tocando eu podia ouvir claramente aquele barulho
inquietante: a respiração desconcertante e rouca...daquilo.
Na minha porta...algo ainda mais horripilante que a
figura de meu bisavô estava lá. Por quê? Porque era o meu bisavô...morto.
Melhor dizendo...morto vivo. Ele estava lá...apenas olhando para mim. Sua pele
estava acinzentada. Sua roupa era o terno em que ele, presumi, havia sido
enterrado...com algumas modificações. Dezenas de partes de suas vestes estavam
rasgadas, permitindo ver sua pele apodrecida. Ele estava coberto pelo o que
parecia ser terra. Dessa vez, ele tinha apenas um olho, o esquerdo. O direito
era apenas um buraco, completamente oco, onde havia sangue que há muito havia
secado. Isso sem falar do cheiro... Eu não quero lembrar daquele aroma
pútrido...de carne que apodreceu por semanas.
“A minha nova cama é muito dura...”. Ele reclamou com sua
voz ainda mais rouca do que eu me lembrava. “Ela é feita de madeira. Fria...
Isso para não falar do meu quarto. Escuro e úmido...cercado por uma imundice
sem igual!”. Ele terminou de esbravejar.
Um calafrio percorreu todo o meu corpo quando eu percebi
que ele falava de seu caixão enterrado num cemitério. Em seguida, ele olhou
para algo atrás de mim. “Travesseiro...”. Ele murmurou. “Talvez eu possa dormir
confortavelmente, afinal...”.
Sem hesitar, eu entreguei o travesseiro na mão dele. No
mesmo instante, ele se aproximou de mim. “Obrigado...”. Disse aquele monstro,
bafejando diretamente contra o meu rosto.
Eu não quero soar exagerado, mas o que aconteceu a seguir
realmente aconteceu: eu desmaiei com o cheiro do hálito dele. Aquele aroma
pútrido ainda me assombra. Com isso, acabei desenvolvendo uma certa mania por
limpeza.
Eu acordei no dia seguinte no hospital. Bem...é isso o
que acontece quando seus pais te vêem desmaiado no chão sem motivo aparente.
Após receber alta e sair do hospital, apesar dos médicos
não saberem explicar o que havia acontecido comigo, eu fui para casa. Será que
eu podia ter imaginado tudo aquilo de novo? Eu bem que queria...
Ao chegar a minha casa, fui direto para o meu quarto. Lá,
vi minha cama com uma leve camada de terra por cima dela...além de um
travesseiro faltando.
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