Playlist 0
Mais um dia que eu prometi a mim mesmo dormir cedo. Mais
um dia que eu quebrei essa promessa. Eu culparia a internet...mas já fiz isso
muitas. A culpa é minha. E somente minha. Se eu tivesse ido dormir cedo naquela
noite, eu estaria bem disposto no dia seguinte. Essa é parte óbvia. A parte que
ninguém poderia prever seria a seguinte.
Eu já havia navegado por centenas de sites. Todos muito
atraentes, porém, poucos realmente bons. Eu já havia acessado dezenas de blogs,
assistido a mais algumas dúzias de vídeos e lido críticas sobre músicas e jogos
que seriam lançados em breve. Eu bocejava. Minhas pálpebras pesavam. A
claridade da tela do meu computador era a única coisa que parecia me manter
acordado. “Talvez eu devesse ir dormir logo...”. Eu murmurei. É...eu falo
sozinho de vez em quando. Talvez eu fizesse aquilo para me manter acordado.
Bem...não importa. Eu estava prestes a dormir quando...eu recebi uma mensagem.
Um amigo meu, com os mesmos hábitos noturnos esquisitos que eu tinha, acabará
de me mandar uma mensagem. “Ah...certo. Durmo depois de responder ele...”.
“Você tem coragem?”. Era o que a mensagem de J, apelido
desse amigo, dizia. Junto com ela, um link. Eu sorri. Conhecendo o J, é algo
para tentar me assustar. Sem hesitar, cliquei no link. Rapidamente, uma nova
página se abriu. “Playlist 0”. Era a única coisa escrita. As letras vermelhas
no fundo preto pareciam brilhar. Fora isso, nada demais. “O que é isso?”.
Perguntei a J. “Não sabe o que é uma playlist, não?”. Ele respondeu. Antes que
eu pudesse digitar algo, mais uma mensagem apareceu. “Apenas baixe a playlist.
E ouça. E...tente não se assustar...”. Apesar de estar cansado, eu consegui
rir. “Como se eu me assustasse tão fácil! Não se preocupe, eu vou baixar.
Depois eu ouço. Te vejo amanhã J”. Logo após digitar essas palavras, baixei o
arquivo. Espantosamente, o arquivo foi baixado em apenas alguns segundos. Mesmo
assim, meus olhos ardiam. Eu tinha que dormir. Eu ouviria a playlist no dia
seguinte.
Eu...nem sonhei naquela noite. Parecia que eu só havia
piscado e o despertador tocou. Eu nem estranhei isso. Nada era tão surreal
quanto o fato de eu ter acordado bem disposto. Eu levantei da cama
quase...agitado. Eu fui até o meu computador. Lá estava a playlist.
Rapidamente, passei o arquivo para o meu celular. Foi ai que eu percebi que o J
havia me deixado uma mensagem. “Eu não acho que eu vou pra aula amanhã. To
pressentindo que eu vou estar doente...”. Eu ri. Era bem típico do J. “Ótimo.
Depois eu te falo o que eu achei da playlist. Acho que eu devo ouvir enquanto
eu volto da escola”. Após digitar isso, sai do quarto.
O dia passou bem tranquilamente. Tomei um banho. Me
arrumei para ir para a aula. Tomei meu café da manhã. Me certifiquei que eu
carregava os meus fones de ouvido. Minha querida mãe me levou para a escola. E...bem,
eu nem me lembro quais aulas eu tive naquele dia. É incrível como, apesar de se
estar bem disposto, a escola consegue te deixar cansado. Sim...eu dormi em
algumas aulas. Não creio ter perdido nada de excepcional.
Enfim, o dia de aula chegou ao fim. Minha mãe trabalhava durante
o meu horário de saída. Não tinha problema. Uma caminhada de vinte minutos se
torna menos cansativa enquanto se ouve música. Mas...um contratempo surgiu. Os
meus fones de ouvido. Eu não sabia onde eles estavam. Eu tinha certeza que eu
os havia pegado de manhã. Onde eles estariam...? “Algum problema?”. Uma voz
familiar me perguntou. Era K. Sim, o apelido dela era a letra inicial do nome
dela, como o de J. A propósito, o meu apelido era R. É...nós não éramos muito
criativos para criar apelidos, mas éramos bons amigos. “Eu não consigo
encontrar os meus fones de ouvido...”. Respondi. “Você deve ter se esquecido
deles, se eu te conheço...”. K sorriu e abriu um dos zíperes da mochila dela.
De lá, ela tirou os fones dela. Eles...não eram muito discretos. Eram daqueles
que cobriam suas orelhas. “Eu posso te emprestar esses. Você vai precisar deles
se você quiser ouvir a Playlist 0, não é verdade?”. Ela disse. Eu senti um
pequeno calafrio percorrer a minha espinha. “Como você sabe...?”. Eu comecei a
perguntar, mas ela me interrompeu. “Eu que enviei a playlist pro J. Isso foi
ontem. Logo em seguida, falei pra ele te passar depois. Ai, eu fui dormir”. K
sorriu. Droga. Sempre que ela sorria, eu ficava um pouco bobo. Eu não poderia
recusar os fones agora. Apesar de um pouco relutante, eu peguei os fones e me
despedi dela.
Finalmente, eu poderia ouvir a Playlist 0. Agora, eu
preferia nunca ter ouvido, mas, naquele dia, eu não sabia o que eu ouviria.
Enquanto eu andava, a música começou a tocar. O som de uma guitarra, um baixo e
uma bateria surgiram sem ritmo algum. Era apenas barulho. Foi ai que o vocal
veio. Uma voz extremamente rouca e gutural começou a dizer palavras em algum
idioma que eu não conhecia. Eu ri. Eu achava que se tratava apenas de uma banda
de metal de garagem. Devia ser apenas uma brincadeira. Tanto do J tanto da K.
Tanta expectativa...pra ouvir aquilo? Eu achei engraçado, mas...ao mesmo tempo,
eu fiquei um pouco decepcionado.
Enquanto a música chegava ao fim, com a música ficando
cada vez mais baixa, percebi que eu já devia estar chegando. Em mais uns cinco
minutos, eu já deveria estar em casa. Foi ai que a música mudou completamente.
Os instrumentos foram substituídos por um piano tocando suavemente. De repente,
uma risada surgiu. Ela...parecia ecoar dentro da minha cabeça. A voz...era a
mesma do vocalista. Disso eu tenho certeza. Aquela voz rouca e profunda...não
creio que outra pessoa no mundo tenha uma voz daquelas. A risada veio seguida
de gritos. Não. Esses gritos não eram como os da música. Esses gritos...eram
horripilantes. Primeiro, foi o de uma mulher. Em seguida, o de um homem a
acompanhou. Desespero. Era isso. Era esse o sentimento que eu sentia daqueles
gritos esganiçados. Em seguida, o homem e a mulher pareciam começar a chorar e,
com dificuldade, implorar. Eles...estavam implorando...para serem soltos. Para
poderem viver. Mas a voz sinistra apenas ria. Foi nesse momento que eu decidi
parar de ouvir aquilo. Entretanto...naquela situação, eu não tinha livre
arbítrio.
Eu parei de andar. Rapidamente, peguei meu celular.
Apertei na tela o botão para parar a música...em vão. A música, se é que eu
poda chamar aquilo assim, não parou. Eu tentei desligar o celular. Também não
deu certo. Bem, o meu celular não era muito novo e nem estava em condições
muito boas, mas...aquilo era novidade. Decidi então desconectar o fone. Sem
resultado. Não importava quanta força eu fizesse. O fone parecia colado ao
celular. Tentar arrebentar o fone também não funcionou. Tirar os fones? Quem me
dera. Quanto mais eu tentava, mais forte parecia que aquilo apertava a minha
cabeça. E, é claro, os gritos, súplicas e o riso maligno continuavam. Minhas
pernas tremiam, mas tentei não pensar nisso. Acelerei o passo, esperando chegar
a minha casa o mais rápido possível. Lá...eu estarei seguro. Era o que eu
esperava.
Agora...essa parte do meu dia foi como um pesadelo. Eu
estava praticamente correndo em direção a minha casa. Novos sons haviam surgido
na...bem...música. Era o som de algum líquido fervendo e...outra sendo afiada,
como duas lâminas raspando uma na outra repetidas vezes. Tenho certeza disso.
E, é claro, os outros sons perturbadores não haviam cessado. Na verdade, eles
pareciam haver piorado. A risada havia se tornado mais alta. As vozes do homem
e da mulher haviam sido abafadas por algo. Minha cabeça havia começado a
latejar de dor. Minha visão parecia ir se tornando embaçada a cada passo. Eu
lutava para manter a mesma velocidade.
Eu quase havia esquecido que havia outras pessoas na rua.
Mas aí percebi que elas passavam apressadamente a minha volta, apontando dedos
na minha direção. Eu imagino que a minha aparência não deveria estar muito boa.
Elas me encaravam como se eu fosse um monstro. Sem exceção. Crianças voltando da
escola. Senhoras que pareciam passear. Um casal bem arrumado. Até um
rapaz...estranho. Acho que essa é a palavra para descrevê-lo. Ele parecia ser o
típico trombadinha, mas...ele estava com medo. Pelo menos era o que eu achava.
Ele andou diretamente contra mim. Quase instintivamente, chequei meus bolsos.
Minha carteira e chave continuavam no meu bolso esquerdo. Quanto ao meu bolso
direito...nem me dei ao trabalho de checar. Apenas o meu celular estava nela.
Os barulhos ainda me atormentavam. Os fones ainda apertavam a minha cabeça.
Logo, meu celular ainda estava no bolso. Ao perceber que eu estava a não mais
de duzentos metros da minha casa, eu resolvi correr.
A voz riu mais alto. Em seguida, veio o som do líquido
fervente...sendo arremessado contra o homem e a mulher. Não era muito diferente
do som de um bife sendo frito...com a óbvia diferença que bifes não gritavam de
dor. Mesmo abafados, os gritos me apavoram até hoje.
Enfim, eu cheguei até a porta de minha casa. Eu tirei a
chave do meu bolso. No mesmo instante, a risada se tornou ainda mais alta.
Quando coloquei a minha no buraco da fechadura...veio o som de metal cortando
através de carne. Eu não sei exatamente o que era. Talvez fosse um cutelo,
mas...a única coisa que eu tenho certeza é de que o homem e a mulher não devem
ter sobrevivido. Inúmeros golpes pareciam cortar os corpos deles. No começo,
eles gritavam desesperadamente, mas, com o tempo...cessaram. Foi nesse instante
que eu percebi que eu estava parado na frente de minha casa. Rapidamente, eu
girei a chave e, em seguida a maçaneta, entrando abruptamente em minha casa.
Aí...eu vi aquilo. A cena estava em preto e branco. Eu
estava em uma sala sem janela alguma. No chão...os restos de duas pessoas
esquartejadas. O sangue estava impregnado no local. Não só o líquido, como
também o cheiro. Eu...estava quase vomitando. Ao me virar para trás...ele me
encarava. Não sei o que era aquilo. Parecia uma pessoa...mas...não podia ser. O
corpo era musculoso, porém, esguio. Ele devia ter quase dois metros de altura.
A pele era negra como carvão...e sem brilho algum. Ele não tinha cabelo. Sua
cabeça era um oval...praticamente lisa. Aquilo não tinha nariz...nem orelhas. Os
olhos eram apenas círculos brancos. A boca era apenas um buraco largo na cabeça
daquilo. Os dentes pareciam ser feitos da mesma coisa do que era a pele.
Então...ele riu. Aquela mesma risada cruel e profunda que eu já estava ouvindo
a mais tempo do que eu queria. “Não dê importância para esses dois que estão no
chão. Eles não são ninguém que você conhece...”. O monstro disse calmamente, o
que me perturbou ainda mais. “Mas...aqueles menino e aquela menino...aqueles
seus amigos que também ouviram a minha voz...”. Ele parou de falar e moveu a
mão dele rapidamente contra minha cintura. Ele...poderia ter me matado...mas
não o fez. Eu olhei para a mão do monstro. Percebi que as pontas de seus dedos
se alongavam como garras negras. Meu celular e parte do fio do fone estavam com
ele agora. “Você deve se preocupar com esses seus amigos. Aliás...só com a
menina. O menino...já não tem mais salvação...”. Antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa, a cena se desfez.
Eu...acordei. Eu...estava na minha cama. Eu estava confuso...muito
confuso. Mas, ao pensar que tudo havia sido um pesadelo...eu me senti aliviado.
Eu consegui sorrir. Mas aí...percebi algo. Os fones de ouvido. Eles ainda
estavam em minha cabeça. Num movimento desesperado, tentei tirá-los
e...consegui. Eles se soltaram sem dificuldade. Eu respirei fundo...mas a
risada do monstro ainda me atormentava. Dentro da minha cabeça...aquilo ainda
ria. Eu puxei o fio do fone. Ele estava arrebentado. Meu celular não estava no
meu bolso. “Filho!” Minha mãe gritou e entrou no meu quarto. Ela estava com um
telefone na mão. Seu rosto estava aflito. “Filho! Aquele seu amigo...o
Jonathan...”. Ela não precisava terminar de falar. J estava morto. E eu logo
estaria também.
E é por isso que eu escrevo isso. Se por algum acaso
alguém encontrar a Playlist 0 em algum lugar...não a ouça...
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