O Choro de Minha Irmã
Eu odeio minha irmã. Eu estaria exagerando? Não.
Bem...talvez. Mas o importante é saber que ela não é normal. Aquele rosto de
anjo sempre enganou todos ao redor dela...com uma exceção. Eu. Aquele cabelo
loiro e liso. Aqueles olhos azuis profundos. Aquele sorriso caloroso. Aquela
expressão ingênua. Eu não conseguia engolir nada daquilo. Por quê? Porque eu
não só dormia sob o mesmo teto que ela, como eu também dormia no mesmo quarto.
Sim. Eu fui forçado a dividir o meu quarto com alguém dez anos mais nova do que
eu. Esse é o motivo pelo qual meus pais pensam que eu tenho problemas com elas.
Antes, eu era filho único. Por dez anos, toda a atenção de meus pais era
voltada para mim. E somente para mim. Mas...agora...tudo havia mudado. Eu...fui
praticamente deixado de lado.
Os meus pais focaram toda a atenção e todo o amor deles
nela. Ela era a princesinha deles. Bem, na verdade, de todo mundo. Todos se
encantavam por ela. Sem exceção. Isso só me fazia sentir mais raiva. De minha
irmã. De meus pais. De todos.
Bem...de uma coisa eu não posso reclamar. Meus amigos. Eu
sempre tive a sorte de ter ótimos amigos ao meu lado. Eles...ouviam as minhas
frustrações. Eles me acalmavam. Eles me faziam sorrir. E, claro, eu os tratava
da mesma maneira. Cada um tinha os seus problemas. Muitos eram relacionados às
famílias deles. É...eu me sentia bem por não ser o único nessa situação.
Mas, sinceramente, caso eu tivesse que escolher perder
meus amigos para que a minha irmã deixasse de existir...talvez eu optasse em
perder as amizades.
Estaria eu sendo dramático demais? Bem...deixe-me
ilustrar a minha vida depois do nascimento de minha irmã. Eu perdi mais da
metade do espaço do meu quarto. Dois terços dos armários agora eram ocupados
pelas roupas e as bonecas estúpidas delas. A minha cama estava praticamente
colada a uma das paredes. Por quê? Porque, aparentemente, alguém menor do que
eu precisa de uma cama maior do que a minha. Isso me enraivecia. E, não, não
poderíamos nos mudar para um lugar maior. Por quê? Bem...parecia que os meus
pais nunca tinham dinheiro agora. Tudo por causa dela.
Os meus pais gastavam rios de dinheiro com minha irmã. Bonecas.
Roupas. Balé. Tudo. Tudo gerava um gasto absurdo.
Mas, sem sombra de dúvidas, o que mais me irritava nela
era o choro. Era um som estridente. Simplesmente perturbador. Sem rosto
levemente rosado se tornava rubro em questão de segundos. Seus olhos também se
avermelhavam. Lágrimas escorriam de seu rosto. Por quê? Porque eu a
contrariava. Ninguém parecia negar nada a ela. Com um sorriso e um piscar de
olhos ela conseguia de doces a vestidos e bonecas caríssimas. Isso funcionava
muito bem com meu pai e minha mãe. Com meus tios e minhas tias. Com meus avôs e
minhas avós. Mas...não comigo. Eu me recusava a mudar de canal quando ela
pedia. Eu me recusava a comprar doces para ela. Eu me recusava a ouvir as
músicas que ela queira. E era assim que vinha o choro dela. Todo a birra que
ela fazia...me atormentava. Profundamente. Mas não me convencia a fazer nada.
O grande problema era: não tinha que funcionar comigo.
Meus pais sempre apareciam para vir ao “resgate” dela. Eu sempre levava uma
bronca e acabava de castigo. Enquanto isso, eles abraçavam calorosamente a
minha irmã, acalmando-a. Eu me sentia péssimo quando isso acontecia...por dois
motivos. O primeiro: é...eu sentia um pouco de inveja. Não vou mentir. Meus
pais nunca me abraçaram mais daquele jeito. Eles...nunca mais haviam se
importado comigo. E...segundo: medo. Eu sentia medo de minha irmã nessas horas.
Enquanto meus pais a abraçavam...ela olhava para mim. Eu...não conseguia
desviar o olhar. Sim, eu a olhava de volta. Eu olhava para o rosto da minha
irmã. E, mais do que qualquer outra coisa, eu sentia medo. Medo do sorriso
sinistro, quase maníaco, que ela exibia para mim. Medo daqueles olhos azuis que
se tornavam frios, quase brancos, sem vida. Medo da voz dela, que continuava
chorosa, apesar do rosto dela já ter se alterado.
E isso se repetia. Com muita freqüência. Durante anos. Eu
tinha pesadelos com o rosto dela. E saber que ela estava dormindo bem ao meu
lado...não me tranquilizava nem um pouco.
“Eu sempre vou estar ao seu lado...”. Minha irmã dizia.
Durante o dia. Antes de eu dormir. Até enquanto eu dormia. Eu...vivia com medo.
Como uma criança podia ser capaz daquilo? Ela me assombrava com tamanha
facilidade...
Mas o que eu poderia fazer? Assustadora ou não...ela
ainda era apenas uma criança. Eu jamais a agrediria. Mas...não era o que os
meus pais pensavam. Por quê? Bem...a minha irmã...aquele demônio...chegava ao
ponto de se agredir e colocava a culpa em mim. Talvez ela se jogasse contra a
maçaneta de uma porta. Contra a quina da cama. Contra a borda de uma pia. Eu
não sei. Eu nunca estava por perto quando acontecia. Mas...isso não provava a
minha inocência. Não para os meus pais. Os castigos começaram a ser mais
severos. Não fisicamente. Eles não eram de fazer esse tipo de coisa. Mas eles
pararam de me dar mesadas. Eu parei de ganhar roupas novas. Celulares novos que
todo mundo falava?Pior ainda...
Enfim...foi assim que eu comecei a trabalhar. No quê?
Qualquer coisa. Qualquer bico que me pagasse. Eu era um adolescente de quinze
anos que nem roupas novas tinha.
E, como era de se esperar, eu não tinha um futuro
brilhante a minha frente. Tendo que trabalhar, com os meus pais praticamente me
odiando e minha irmã me atormentando...eu não encontrava muitos motivos para
viver. Acabei repetindo um ano na escola. Não que meus pais se importassem.
Se não fosse pelos meus amigos...talvez eu tivesse me
matado. Desistir de viver parecia muito fácil. Mas abandonar os meus
amigos...não era uma opção.
Foi assim, com essa mentalidade, que eu consegui não só
me formar no ensino médio, mas também conseguir uma vaga em uma faculdade. Não
era grande coisa, mas eu até que estava orgulhoso. Além disso, eu poderia
finalmente poder viver agora. Por quê? Bem...a faculdade era em outra cidade.
Agora, com dezoito anos de idade, eu tinha um grande motivo para me mudar de
casa.
Meus pais aprovaram a minha saída de casa. Sem demonstrar
nenhuma emoção. Mas isso não significava nada para mim. Eu estaria feliz.
Enquanto eu arrumava as minhas malas, ela, com um vestido
branco caríssimo, entrou no quarto. Minha irmã. Ela...parecia irritada. Já era
de se imaginar, pois eu estava sorrindo. “Você nunca mais vai chegar perto de
mim”. Eu disse aquilo mais dramaticamente do que eu pretendia. Minha irmã abriu
a boca e, por alguns instantes não disse nada. “Entendo...”. Ela, enfim, disse.
Calmamente, ela saiu do quarto. Mais feliz do que eu estava em anos, eu voltei
a arrumar a minha mala. Alguns instantes se passaram. Então, eu ouvi um
barulho. Muito alto. Diferente de qualquer coisa que eu já havia ouvido na
vida. Logo em seguida, eu ouvi o grito da minha mãe. Em seguida, do meu pai.
Eu corri até onde eles estavam. A sala de estar. Os dois
estavam em frente à janela. Eu corri até lá. Havia espaço suficiente do lado
direito do meu pai para que eu me juntasse a eles. Os dois olhavam,
horrorizados, para baixo. Eu suponho que o meu rosto também devia ter a mesma
expressão de pavor. Dez andares abaixo...um corpo estava estirado no chão do
estacionamento do prédio. Uma poça se sangue já começava a se formar ao entorno
dela. Sim, aquele corpo era o de minha irmã. Teria ela se matado? Eu não sabia
dizer. A única coisa que eu sabia era: ela estava morta.
Eu...deveria ficar feliz, não? Depois de eu tanto sofrer
nas mãos dela...eu deveria estar feliz, não? A minha irmã estava morta agora.
Então...por que eu estava triste? Eu não conseguia chorar...mas,
definitivamente, eu não estava bem.
Ela havia se matado. Os meus pais, que agora choravam
incontrolavelmente, viram a cena. Ela subiu no parapeito da janela e olhou para
os dois. Sua expressão era vazia, disseram.
Antes que eles pudessem fazer qualquer coisa...ela se jogou para trás. O
crânio dela se abriu com o impacto. É...ela caiu exatamente de cabeça no chão.
Morreu no mesmo instante.
Agora, eu não sentia mais raiva do mundo...com uma única
exceção: eu. Eu desejei inúmeras vezes que minha irmã morresse. Eu ainda não
sabia o que a levara a tirar a própria vida...mas isso não importava mais, eu
acho.
O funeral passou muito rápido. Nada de mais aconteceu. A
típica melancolia e pesar. “Ela morreu ainda tão jovem...”. Era o que muitos
dos presentes diziam. Outros optaram por nem abrir a boca. Afinal, a minha irmã
havia se suicidado. Algum motivo tinha que ter. Mas, claro, ninguém tocaria
nesse assunto. Não tão cedo pelo menos.
Eu ainda tinha uma vida para viver. Já havia planejado
tanta coisa.
Na noite do dia seguinte, eu me despedi de meus amigos.
Saímos juntos. Bebemos. Comemos. Jogamos conversa fora. E bebemos de novo. Principalmente
eu. Eu não saberia se veria mais algum deles de novo e eu tinha ido ao funeral
de minha irmã no dia anterior. Ninguém me impediria de beber naquela noite.
Infelizmente, a noite passou em um piscar de olhos. Mas
algo excepcionalmente bom ocorreu
envolvendo uma amiga minha. Eu gostava dela. Muito. Mas...eu nunca tive
coragem de contá-la. Foi então que ela se aproximou de mim. “Eu acho que vou me
mudar para a mesma cidade que você” ela disse. Eu sorri. Ela me explicou os
detalhes. Disse que trabalharia na loja de uma tia que morava na cidade.
E...bem, o álcool nos faz dizer coisas engraçadas. Eu...acabei admitindo que eu
gostava dela. Eu nem lembro direito o que eu disse. O que eu me lembro foi a
reação dela. Um beijo. Foi rápido, mas foi o melhor de minha vida. E, agora,
ela se mudaria para a mesma cidade que eu. A vida era maravilhosa.
No final da noite, um amigo meu me levou, de carro, até
em casa. Eu agradeci a ele...eu espero. Eu estava muito bêbado. Eu não lembro
nem como eu consegui abrir a porta de casa. Mas eu me lembro do escuro e do
silêncio. Não havia ninguém, além de mim, no apartamento. Pela primeira vez em
anos...paz. Meus pais, ainda muito abalados, passaram a noite na casa de alguns
parentes. Normal. Não questionei.
Como eu resolvi aproveitar a paz? Dormindo. Eu estava
cansado e bêbado. Acho que foi a melhor opção. Logo, cambaleante, eu andei até
o meu quarto. Simplesmente tropecei em par de chinelos que estava em frente a
minha cama, o que me fez cair de cara no colchão. Eu não pude conter o riso. Eu
ri como nunca. Eu podia ser feliz agora. Finalmente.
Minhas pálpebras pesaram. Eu bocejei. Feliz e cansado. A
combinação perfeita para se dormir bem. Mais um segundo naquele silêncio
aconchegante seria mais que o suficiente para me fazer adormecer. Mas não. O
silêncio se rompeu. O som que veio me perturbou como nunca antes. Eu arregalei
os olhos. Da cama vazia ao lado da minha, o choro estridente de minha irmã soou
mais uma vez, seguido por uma breve fala que me atormenta até hoje. “Eu sempre
vou estar ao seu lado...”.
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